23 de março de 2008

O universo em desencanto, o coqueiro derrubado e o telefonema bomba

VOLTE UMA JOGADA, quer dizer, VOLTE UMA POSTAGEM. Se você chegou até aqui sem passar pelo texto anterior, recomendo que o leia antes deste. Isso não é necessariamente um pré-requesito. Se não quiser, pode avançar a leitura, pois são textos independentes, embora o primeiro a ser postado contextualize o segundo.


Na barraca de praia, a pedido de Rodrigão, que era o dono do CD, se ouvia a voz grave de Tim Maia cantando “Que beleza é curtir a natureza...”, mas eu não me sentia feliz ao ver a superfície prateada do mar de Garapuá, com as nuances de cor-de-rosa características do final de tarde. Ao contrário do que afirmava a música, eu não conseguia curtir a brisa e a paisagem belíssima daquele lugar. Eram os primeiros sinais de que algo não ia bem, nos últimos dias do ano de 2002.

Mas havia uma outra música do disco Racional que tinha mais a ver com meu estado de espírito. A melodia era bastante melancólica, e um dos versos falava de um livro intitulado “O universo em desencanto”. Davi, que passara oito meses em Londres tentando se encontrar, estava mais perdido e sem rumo do que nunca. Esse era o principal motivo do meu desencanto: as promessas de happy end não haviam se concretizado com a volta dele, e o tão sonhado reveillon não tinha o clima de romance que eu esperava, mesmo estando num lugar paradisíaco, ao lado do homem que eu amava e de quem estive longe por um tempo. O fato de ele finalmente estar próximo e parecer mais distante do que quando um oceano nos separava me angustiava profundamente.

“Um futuro promissor” foi o que ele nos desejou no brinde com champanhe, após o beijo da virada de ano. Apesar de achar que aquelas palavras não combinavam muito com Davi, jamais me passaria pela cabeça, a idéia de um futuro promissor sem ele junto de mim. A frase, obviamente, se referia ao nosso futuro como um casal, mas o destino a interpretou de outra maneira.

A dança estava apenas começando, e somente um dos sete véus da ilusão havia caído, em Garapuá, no início do ano de 2003. Daí em diante, eu já não me empolgava como antes, quando Davi falava em “nossa casinha” ou fazia planos de casamento. Mesmo assim, eu acreditava que se tratava de uma crise passageira no nosso namoro. Afinal, eram muitas as expectativas, de ambos os lados, que havia em torno da viagem a Londres; portanto, as frustrações também deveriam ser compreensíveis.

As revistas femininas anunciavam um ano regido por Vênus, o planeta do amor. O horóscopo da Cláudia, para o meu signo, dizia:

“De janeiro a abril, o período é propício ao isolamento e à introspecção. Você vai se sentir bem em casa ou com amigos íntimos. O importante é não levar tudo a sério demais e diminuir as expectativas da vida amorosa. Entre junho e setembro, com a insatisfação amenizada, você estará mais fortalecida e confiante. Para manter esse clima, evite discussões e procure conservar a calma. A partir de outubro, os bons aspectos de Vênus e Urano trazem a solução dos impasses. Você ampliará sua percepção, verá com outros olhos o parceiro e se sentirá muito mais livre para amar sem barreiras. Cultive: o pragmatismo, com atitudes e palavras otimistas, que encorajem a autonomia do parceiro. Evite: a nostalgia. Ter algumas cicatrizes no coração é inevitável. Cabe a você escolher revisitá-las ou seguir em frente”.

O que a emoção é capaz de fazer com a razão, em um ser de Câncer, mesmo que ele tenha ascendente em Libra! E o que é a fragilidade humana: a pessoa estuda, lê McLuhan, Pierre Lévy, Edgar Morin e Paulo Freire, torna-se Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas e vai apegar-se às previsões de uma tal de Teresa Kawall, que nem se sabe se é astróloga. Pois é, comecei a seguir à risca os conselhos do horóscopo: pragmática, sempre fui, e não custava nada levantar o moral do meu parceiro, que, principalmente, nos primeiros meses do ano, realmente passou por uma fase meio pra baixo; visitinhas às cicatrizes no coração, nem pensar! E eu seguia em frente, sempre tendo como perspectiva o mês de outubro, que traria os bons aspectos de Vênus e Urano. Mas o que estava escrito nas estrelas tinha um significado um pouco diferente daquele atribuído, por mim, ao texto da revista Cláudia do mês de janeiro.

Ao longo do ano, passamos por períodos de altos e baixos, e as constantes oscilações eram permeadas, nos momentos críticos, de conversas para discutir a relação, as conhecidas DRs. Estas se revestiam de um tom mais maduro e diferiam bastante das chorumelas (discussões chatinhas devido aos pequenos problemas cotidianos de um casal) de outros tempos; eram consideradas, por nós, como ajustes necessários para a mudança de patamar prevista, já que pensávamos em dividir uma casa, as contas e as responsabilidades, ter filhos (Amir[1] e/ou, talvez, Malu[2]) e deixar de ser apenas namoradinhos.

Numa noite, assistimos ao documentário sobre a Oficina de Atores do filme Cidade de Deus, que vinha como extra no DVD e que eu exibiria para meus alunos. No depoimento de Gutti Fraga, coordenador do projeto Nós do Morro e responsável pela oficina, ele justificava o sucesso do filme afirmando que haviam construído uma boa base. “Eu acredito muito na base”, enfatizava. E foi a base sólida sobre a qual a nossa relação havia sido construída que impediu que terminássemos o namoro, duas noites depois daquela em que vimos como foi feita a preparação dos atores de Cidade de Deus, como desdobramento de uma DR que aconteceu ainda na mesma noite em que assistimos ao DVD. Respeito, admiração, confiança, cumplicidade e muito tesão (mesmo depois de 8 anos juntos) eram os pilares do nosso relacionamento.

Nós também acreditávamos muito na base. No entanto, uma cena que presenciei em Busca-Vida abalou um pouco a minha crença. Aquilo me marcou tanto que acho que foi uma espécie de prenúncio do que viria acontecer um tempo depois. Antes é preciso contextualizar que o clima entre nós era bom naquele fim de semana, a “insatisfação estava amenizada”, e eu me sentia “mais fortalecida e confiante”. Dona Áurea, a avó de Davi, ordenou ao caseiro que derrubasse um coqueiro que se encontrava bastante inclinado pela ação do vento, pois havia o risco, ainda que não fosse iminente, de ele vir a cair sobre a casa. Davi, que estava acostumado (e até saudoso, conforme seus comentários) aos serviços braçais, depois ter trabalhado como operário de obra em Londres, disse que ele mesmo se encarregaria da tarefa. Pegou o machado e, à custa de muito suor, empregado em lentos e duros golpes, pôs o coqueiro abaixo.

Enquanto as farpas voavam com as machadadas de Davi, eu pensava nas raízes que compunham uma base capaz de sustentar um tronco tão elevado e uma copa tão pesada, erguidos em direção ao céu. Depois de finalizado o trabalho, restava apenas um toco feio como a lembrança do que antes fora uma árvore imponente. Eu detinha meu olhar no cerne avermelhado da base que ficou presa à terra, e uma sensação de dor pairava no ar. Ouvia-se novamente o som seco dos golpes do machado, naquele instante empenhados em transformar em banco o tronco caído no chão. Praticamente cheguei a pressentir, mas não podia imaginar, de forma alguma, que o corte lento e profundo, como o verso de Cazuza, mais tarde, seria entre Davi e eu.

No dia 30 de outubro de 2003, vivi meu 11 de setembro. O elemento surpresa e as repercussões do fato, que não só abalou a maior potência mundial, como, de um dia para o outro, alterou toda configuração política e econômica global, fazem com que o ataque terrorista promovido por Bin Laden seja o que, por comparação, melhor ilustre o efeito que a resolução de terminar o namoro, anunciada por Davi num telefonema, teve sobre mim. Quando ele falou que via com clareza que a nossa relação seria inviável a longo prazo, isso teve um impacto tão forte quanto o provocado pelo choque, seguido de explosão, do primeiro avião contra uma das torres gêmeas. A conversa prosseguiu por alguns minutos, e o segundo avião atravessou meu coração no momento em que Davi confirmou que estava seguro da decisão que tinha tomado, pouco antes de desligarmos o telefone.

Da mesma forma que aqueles que viram as imagens do atentado em Nova York pela televisão e as fotografias estampadas nas primeiras páginas dos jornais e nas capas de revistas do mundo inteiro custavam a acreditar que aquilo fosse verdade, também parecia coisa de cinema que alguém (Davi) pudesse terminar um namoro de oito anos e meio, falando ao celular, no meio da Praça Municipal, sob o sol do meio dia e tendo a sua frente a vista espetacular da Baía de Todos os Santos.

Se para os que receberam a notícia (diferentemente do episódio do 11 de setembro, estes, no nosso caso, foram muito poucos num primeiro momento) aquilo soava como inacreditável, para mim, era mais difícil ainda processar a informação e aceitar a nova configuração, cujo primeiro cenário era completamente desastroso e desesperador. Para efeito de contextualização, aqui cabe uma breve retrospectiva dos fatos que antecederam o telefonema bomba. No dia anterior, Davi havia me ligado, todo feliz, no meio da tarde, para me comunicar que o projeto no qual ele estava trabalhando, provavelmente, seria renovado e que isso representaria a possibilidade de ele ganhar um salário fixo nos próximos dois anos, o que, segundo suas palavras, tornava mais concreta a perspectiva de casamento em curto ou médio prazo. Nesse mesmo dia, à noite, devido a um motivo banal, tivemos uma pequena discussão que nem chegou a se configurar como tal: eu estava à beira da exaustão depois de ter passado duas semanas corrigindo pilhas de trabalhos madrugada adentro, e Davi queria que eu fosse para casa dele, em vez de ele ir para minha, alegando que também estava cansado. Eu considerei aquilo um comportamento egoísta, já que, em outras duas ocasiões naquela semana, ele havia superado o cansaço para sair com os amigos, mas, embora um pouco chateada, encerrei a conversa numa boa e fui dormir para recuperar o sono perdido, pois, além de achar injusto, não estava em condições físicas de sair de casa àquela hora para me encontrar com ele. No dia seguinte, ele me ligou quando eu estava na faculdade. Eu falei que já tinha entrado na sala e que só estava aguardando a outra professora sair, para começar a minha aula. Ele disse: “Só liguei mesmo para dar um beijinho”. E eu respondi no mesmo tom frio com que atendi a ligação, pois queria demonstrar que estava insatisfeita com a atitude dele na noite anterior: “Quando chegar em casa, eu ligo para você”. Foi exatamente o que fiz, e as minhas queixas externadas durante a conversa contribuíram para que ele, seguindo um impulso, resolvesse dar um fim ao relacionamento, de forma repentina e por isso mesmo devastadora.

A imagem das torres ruindo lentamente e queimando por dentro é muito mais eloqüente, para representar o modo como me senti, do que a do coqueiro derrubado em Busca-Vida. Nos três casos (incluindo aí o meu namoro com Davi), a base sólida não foi capaz de sustentar a estrutura firme e tão bem construída, tamanho foi o impacto causado pelo golpe sofrido. Bin Laden conseguiu atingir em cheio o coração financeiro do planeta, e partir daí a ordem mundial nunca mais seria a mesma; meu coração também tinha sido brutalmente atingido, e Davi, que era o centro dele, assumiria um outro papel em minha vida, que, desde então, mudaria substancialmente. Das torres que um dia foram as mais altas do mundo, logo depois da tragédia, só restavam os escombros e a fumaça decorrente da explosão. A visão dos dois prédios lado a lado não fazia mais parte da paisagem da ilha de Manhattan; assim aconteceria comigo e Davi.

Em meio à comoção provocada pela minha “tragédia” pessoal, eu não tinha a menor condição de fazer qualquer tipo de previsão sobre o que aconteceria depois daquilo e não podia me valer da opinião dos especialistas em análises sobre a conjuntura pós-desastre; no máximo, contava com palavras de consolo da família e dos amigos mais próximos. A dor era absurdamente forte; era como se os gritos e os choros das milhares de vítimas do atentado terrorista em Nova York e daqueles que ali perderam seus amigos e familiares ecoassem dentro de mim. Qualquer tentativa de descrição desse sentimento pode parecer exagero e/ou perde a força ao ter de se valer desse tipo de comparação, talvez um tanto clichê, para caracterizar a situação, mas é, ao mesmo tempo, insuficiente para dar a dimensão exata do meu sofrimento.

É de Caetano uma frase que fala de quão é impressionante “a força que as coisas parecem ter, quando precisam acontecer”. E foi mesmo incrível eu ter encontrado uma força interna que me fez resistir ao impulso de ligar para Davi enquanto aguardava que ele me ligasse novamente, mesmo porque eu merecia uma explicação mais detalhada e esclarecedora sobre o que tinha acontecido. Não queria que uma ligação minha o induzisse a voltar atrás na decisão; se isso tivesse de acontecer, deveria ser por iniciativa dele, e eu não poderia exercer qualquer tipo de pressão nesse sentido, sob pena de depois ter de viver numa permanente insegurança, sem saber se ele o fez, por vontade própria ou por influência minha. O telefonema bomba aconteceu ao meio dia de uma quinta-feira, e o outro, aquele telefonema por mim esperado, só veio a acontecer na noite de domingo.

Um relacionamento de tanto tempo não poderia ter seu fim decretado numa conversa por telefone. Ou melhor, o tempo de convivência não era o principal fator agravante; a grande questão era: um grande amor não podia acabar assim (“feito espumas ao vento”). Nos encontramos na segunda-feira, para ter a esperada conversa cara a cara, olhos nos olhos, cheios de lágrimas, no caso de Davi; eu não sei como encontrei uma serenidade, advinda da tal força de que fala Caetano, e consegui conter meu pranto. Enquanto ele chorava copiosamente à medida que tentava justificar sua decisão por meio de uma argumentação demasiadamente superficial, eu procurava mostrar as conseqüências que aquilo teria em nossas vidas, e sobre as quais eu passara os últimos dias refletindo, quando o desespero dava uma trégua. Havíamos chegado num ponto limite, uma nova fase seria inaugurada, e havia duas possibilidades: romper definitivamente ou renovar por tempo indeterminado o “acordo tácito” que mantinha o nosso vínculo. Para mim, uma decisão como aquela não podia ser tomada repentinamente; necessitava de um tempo de reflexão para ser sacramentada. E a minha proposta era justamente dar a Davi esse tempo, para que, longe de mim e da minha influência, ele pudesse escolher uma entre as duas opções que estavam colocadas.

O período ― este durou um mês ― que antecedeu a decisão final foi marcado por uma agonia insuportável, devido à indefinição que marcava aquela primeira separação. Tudo, para mim, era novo e motivo de muito sofrimento: estar longe de Davi, não saber como ele estava reagindo à situação e, o que era pior, não conseguir imaginar o que viria dali em diante.

Antes de nos despedirmos, após a dolorosa conversa naquela segunda-feira, Davi me disse: “O rompimento nunca será definitivo”. Aquela sentença, em vez de me animar, tinha um outro sentido para mim. Um sentido que não só foi interpretado do ponto de vista semântico, mas, literalmente, sentido na pele, na carne: naquele instante, pude experimentar o peso do grilhão de ferro com que Davi me acorrentava a ele. E eu sabia que aquela amarra teria de ser quebrada, caso ele optasse pela nossa separação, e que eu teria de lutar com todas as minhas forças para não me deixar escravizar por aquele amor que, de fato, até então por minha livre vontade, me prendia inexoravelmente a ele.

E um beija-flor marrom, pousado numa amendoeira, assistiu àquela nossa despedida, enquanto, coincidentemente, e/ou por obra do destino, Caetano cantava no rádio do meu carro, sintonizado na Nova Brasil: “Agora, que faço eu da vida sem você? Você não me ensinou a te esquecer, você só me ensinou a te querer, e te querendo eu vou tentando me encontrar...”.



Durante meses, eu vivi exatamente o que diziam aqueles versos, popularizados na trilha sonora do filme Lisbela e o Prisioneiro, até que um dia o grilhão se rompeu sem que eu me desse conta disso. E foi assim que vivenciei a sensação de liberdade e constatei que já não era mais prisioneira daquele amor incondicional. O horóscopo da Cláudia, com um certo atraso, é verdade, acabou se concretizando, na medida em que ampliei a minha percepção e passei a ver com outros olhos o meu antigo parceiro, além de me sentir muito mais livre para amar, sem barreiras, a vida, a mim mesma e quem quer que apareça em meu caminho para ocupar novamente meu coração.

Salvador, 21 de abril de 2005,

Cristiana Serra, um tanto afetada emocionalmente pelas lembranças que vieram à tona, de forma catártica; mas, de certo modo, orgulhosa por levar a cabo a difícil tarefa de escrever sobre essa fase da separação. Acredito que ainda haverá outros textos sobre o período que seguiu o fim do namoro com Davi, mas esses certamente não serão tão dolorosos como este que acabei de redigir.


[1]Nome escolhido, por Davi, devido à sua admiração por Amir Klink, mas de que eu não gostava por ser um nome estrangeiro e porque temia que meu filho, inspirado no nome, se tornasse um navegador solitário.
[2] Nome escolhido, por mim, por ser curtinho e forte, mas de que Davi não gostava por causa da possível rima.

2 comentários:

Eduardo disse...

Fiquei meio angustiado, mas parabéns.Abraço.

Cris disse...

Esse texto realmente foge ao padrão das "porções de diversão". A angústia vivida no momento de que ele trata, às vezes, se sobrepõe ao tom mais leve da escrita. Abraço