3 de abril de 2008

“Tapinha não dói, só um tapinha!” ou “A Loura em Fuga e o Selvagem da Motocicleta”

UMA BREVE NOTA SOBRE O TEXTO: Na versão original, escrita em 2004 , como é mencionado num determinado ponto da narrativa, eu já havia substituído alguns nomes por codinomes devido ao caráter da situação da qual o texto trata. Na versão aqui publicada, resolvi também não identificar pelos nomes verdadeiros as minhas amigas que participaram do episódio narrado. Tal procedimento também deverá ser usado outras vezes, já que, entre elas, acredito que uma e outra não aprovariam o fato de suas histórias particulares ganharem uma dimensão pública. Portanto, os nomes em itálico são todos fictícios. Como vocês poderão perceber, não usei o princípio da verossimilhança na escolha deles, afinal Patty, Lyly, Josy e Beth não se parecem em nada como os nomes de minhas amigas. O texto é um tanto longo para os padrões da Internet, mas achei que não teria sentido fragmentá-lo, uma vez que a narrativa segue uma linearidade. Vamos em frente!

Depois de uma série de megaeventos, na cidade e pelas bandas de Praia do Forte (Forte Folia, com Luis Caldas; Ensaio do Jammil, com Leo Jaime; Festa à Fantasia da Zion, com Cidade Negra; e Luau em Scarreef, com Blitz e Men at Work), eu e minhas amigas ansiávamos por uma noite de sexta-feira comum e tranqüila em Salvador. Queríamos poupar nossas energias, uma vez que, no domingo, haveria o prometido passeio “Melhor Está Por Vir II”, na lancha de Patty, e o fim de semana seguinte seria prolongado pelo feriado da Proclamação da República; no nosso caso, proclamaríamos a curtição sem limites (Lyly, em Sauípe; e eu e Beth, em Itacaré).

Patty saiu para comer caranguejo com os pais (que também são seus sócios no escritório), para fazer a média, já que não havia trabalhado alguns dias para ficar com seu namorado argentino-nova-iorquino e em breve tiraria mais uns dias de férias para ficar com ele novamente, desta vez em Nova York. Como não somos tão chiques nem precisávamos fazer média com ninguém, combinamos de nos encontrar no restaurante de um amigo de Beth, por insistência dela, e mais por consideração à amizade deles do que por uma questão de fazer média. Eu e Lyly, acompanhada de Fabiane, a mais nova solteira do grupo, preferíamos ir para o “Divina Providência”, mas aceitamos a sugestão de Beth também por uma questão de amizade. Não sabia eu que, naquela noite, tomaria uma outra decisão, movida pelo mesmo propósito, da qual me arrependeria profundamente, pois a providência divina não agiria em meu favor; ao contrário, eu seria incumbida de uma missão de salvação.

Josy, mais uma vez, ficará de fora da crônica, desta vez, para a sorte dela, pois, se estivesse conosco, seria forte candidata a compartilhar do nosso calvário, até porque foi ela quem introduziu o Selvagem da Motocicleta em nosso círculo de amigos, ou melhor, no caso dele particularmente, de conhecidos. Só para ilustrar com mais clareza a situação, se ele constasse da minha "network" de "friends" do Orkut, certamente, após o episódio da terrível noite de sexta, seria rebaixado da categoria “acquaintance” para a de “haven’t met”. Ainda bem que ele não está na minha rede do Orkut, e o mais recomendável a fazer é evitar qualquer possibilidade de “meeting him”.

Já fui meio arrumadinha para a faculdade e, mesmo antes de me maquiar e trocar a calça jeans por uma minissaia que levei na bolsa para colocar depois da aula, recebi elogios de alunos de ambos os sexos. As meninas, normalmente, se limitavam a perguntar: “Vai sair para se divertir hoje, professora?”. Ou então: “Vai cair no reggae, não é, Cris?”, outras diziam quebrando qualquer resquício de formalidade. E eu respondia toda sorridente: “A intenção é essa”. Doce ilusão, juro que ficaria muito mais feliz se, após entregar minha caderneta no Atendimento ao Docente, tivesse ido para casa, onde assistiria à estréia dos “Aspones”, antes de cochilar no sofá durante o “Jornal da Globo”.

Quando cheguei no restaurante do amigo de Beth, as meninas já estavam comendo duas porções de bruschetta e, para diminuir o sentimento de culpa, escolhiam uma salada do novo cardápio. Lyly e Fabiane bebiam roska de tangerina com adoçante e dividiriam o prato de salada; diferentemente de Beth, que comeu um prato inteiro sozinha, salvo os palmitos doados para Lyly, e optou por um calórico coquetel, o qual, apesar do leite condensado em sua composição, era de frutas, só para manter a fachada. O certo é que, depois do disfarce light, elas caíram matando em uma deliciosa torta búlgara; duas, na verdade, uma de Fabiane e Lyly, e outra de Beth, que acabou a dividindo comigo. Aqueles pedaços de torta compartilhados com minha querida amiga seriam responsáveis pelos instantes de maior prazer daquela noite trágica.

O episódio “O Pior Está Por Vir”, que, com fé em Deus, não terá parte II, começou com o questionamento de Beth, formulado como um desafio e dirigido à mesa enquanto ela aguardava a torta: “Quem é a Joselita[1] que vai comigo para a 'Satélite'[2]?”. Como Josy[3] não estava lá, eu seria a mais provável aspirante ao papel de Joselita. Era aniversário de Bela, e Beth deveria comparecer à comemoração na “Satélite”, não para fazer média, mas pelo fato de a aniversariante ser sua prima. Eu não queria voltar para casa naquele momento e perguntei à Lyly e à Fabiane se elas pretendiam ir para outro lugar. Diante da negativa e para ser solidária com Beth, resolvi aceitar o convite que me era feito em tom de insistência: “Cris, vamos! Você deixa seu carro em casa e vai comigo para a 'Satélite'”. Como diz o jumento no monólogo inicial dos "Saltimbancos", “pensei com meus botões”: “Faço companhia a minha amiga, que não deve demorar, pois não está muito a fim de ir ― somente o fará por obrigação familiar ―, e quem sabe, pela minha prova de amizade, posso ser recompensada encontrando um novo amor ou alguém interessante. Nada, nada, com ou sem novo amor, não deixa de ser uma oportunidade de beijar na boca e ou, pelo menos, de abrir novas frentes de trabalho”.

Ao me despedir de Lyly e Fabiane, firmei o compromisso de ir à praia com elas no dia seguinte: “Aconteça o que acontecer, mesmo dormindo tarde, irei para praia com vocês. Lyly, pode me ligar assim que acordar”. O que realmente aconteceu demonstra o quanto sou uma mulher de palavra: já estava acordada (quer dizer, mal tinha dormido e, se cheguei a dormir, foi muito mal), a contragosto, quando Lyly me ligou, e fui à praia com ela e Fabiane, inclusive para relaxar do stress da noite anterior. Dei tchau às meninas, paguei o guardador de carro, por mim e por Beth, e ele aceitou, sem reclamar, o trocado no esquema pague um leve dois. Em seguida, deixei meu carro em casa e parti com Beth para a "Satélite".

Como a história que vem a seguir é caso de polícia, ou pelo menos se enquadra entre aqueles que devem ser encaminhados à delegacia de mulheres, preservarei a identidade dos principais envolvidos, aos quais serão atribuídos codinomes. A principal vítima (embora também culpada) será aqui chamada de Loura Fugitiva, e o agressor terá o codinome, já mencionado, de Selvagem da Motocicleta. Para evitar a identificação dos protagonistas, os nomes dos que mantêm algum tipo de relação com eles e tiveram alguma participação na história, ainda que como figurantes, também serão alterados a partir de agora.

Assim que entramos na "Satélite", encontramos nossos amigos DDD e DDI. Eles estavam acompanhados de dois amigos que não conhecíamos e aos quais logo fomos apresentadas: um que até achei interessante e que será identificado como Bonitinho; e outro que será apelidado de Lagartixa, pela remota relação com seu apelido de verdade. Além de Bonitinho e Lagartixa, DDD e DDI estavam juntos com o Selvagem da Motocicleta, que nos cumprimentou com um efusivo abraço e, naquele momento, não tinha ao seu lado a Loura Fugitiva, sua namorada. Mesmo ignorando os antecedentes de desequilíbrio mental, Beth chegou a comentar comigo que estranhou a reação do Selvagem, quando ele soube da vitória de DJ Ogrinho (que, durante a semana, trabalha como engenheiro de uma indústria do ramo automobilístico), candidato à vaga de namorado dela, na última eleição (esta ocorreu no mesmo período das eleições municipais, e havia outros dois candidatos).

Fomos ao encontro de Bela, a aniversariante, a qual, assim que lhes foi apresentada, aguçou a cobiça de DDD e DDI; este último, como de costume, disse estar apaixonado por ela. Cheguei a ajudá-lo em suas investidas, em retribuição às vezes em que ele assumiu o papel de “afasta cantadas indesejáveis”, inclusive naquela ocasião; isto é, toda vez que eu pressentia uma cantada que não queria receber, abraçava, puxava conversa e ou ficava dançando com DDI, que é meu amigo e jamais seria um peguete. Eu estava animada e tinha até lançado alguns olhares furtivos para Bonitinho, sem, no entanto, dar muito mole, quando começou a tocar a seleção de Hip Hop. Foi mais ou menos nessa hora que conheci Loura Fugitiva; só fui saber que ela era namorada do Selvagem da Moto um pouco depois.

Como meu radar estava sintonizado em outra faixa de freqüência, não percebi direito algo que ocorreu momentaneamente entre Beth, o Selvagem e a Loura; lembro apenas de ter ouvido Beth falar qualquer coisa como “Pare, Selvagenzinho!”. Acho que ela até comentou comigo o que aconteceu, mas confesso não ter prestado muita atenção, pois não queria perder de vista um carinha que havia despertado o meu interesse e, de vez em quando, me olhava de longe. Embora não tivesse absolutamente nada a ver, ele me fez lembrar George Clooney. Nem grisalho era; não sei qual foi o motivo da associação com o ator de Hollywood: talvez o jeito másculo de dançar e segurar o copo de whisky, ou um trejeito que fazia com a boca, ou ainda o fato de não ter propriamente o tradicional rostinho perfeitinho, mas ser charmoso.

Quando finalmente o tal rapaz saiu do meu campo de visão, resolvi ir ao banheiro. Ao abrir a porta, me deparei com Loura Fugitiva sentada em um banco, mas achei que ela esperava alguma amiga. Devo ter dado um sorrisinho em sinal de atenção, mas não puxei conversa. Quando retornei para a pista, quase falo com Lantejoula Cor de Rosa ― amiga ou conhecida da Loura, que mais tarde teria também uma significativa participação na história ―, pensando que era Beth, cuja camisa parecia com a dela. Comentei com Beth que a Loura estava lá no banheiro. “Ela estava chorando?”, Beth perguntou. “Acho que não, não reparei. Por que estaria?”, indaguei em seguida. “Sei lá, você não viu o que o Selvagem fez comigo? Esse Selvagenzinho é maluco, não te falei o que ele falou quanto a eu estar namorando com DJ Ogro”, disse ela. Eu naquele momento não dei muita importância à Loura, ao Selvagem e à preocupação de Beth, só queria avistar novamente o Segura Copo como Clooney.

Loura Fugitiva voltou do banheiro distribuindo balinhas de hortelã para todos nós. Beth relaxou, ao constatar que a menina não havia se chateado (caso contrário, não a teria presenteado com uma balinha), e aproveitou para puxar papo e ser simpática com ela, com objetivo de evitar qualquer mal-entendido. Mal sabia Beth que, segundo nos relatou a Loura, quando já estava sob nossa proteção, as balinhas seriam o elemento catalisador do surto psicótico do Selvagem.

Um pouco mais tarde, me dei conta de que algo fora do normal acontecia: DDD há um bom tempo não estava mais com a gente; Lagartixa derramou o resto do conteúdo do seu copo no de Beth e se despediu; instantes depois, Bonitinho veio falar comigo, e eu quase ofereci o rosto para os dois beijinhos, pensando que ele estava se despedindo também, mas, na verdade, queria saber de DDD e saiu meio afoito, quando eu disse que não sabia do paradeiro dele. Nesse ínterim, Loura, que havia se afastado de nós por uns minutos, veio ofegante falar com DDI e o puxou pelo braço, arrastando-o em direção ao bar.

Sem DDI ao meu lado, não consegui evitar duas cantadas indesejáveis: um tampinha perguntou se DDI era amigo de Beth, fez um comentário sobre minha tatuagem e, como eu respondia monossilabicamente ou com um meio sorriso a suas perguntas, se queixou de que eu não estava sendo gentil com ele; o outro, bem mais alto do que eu, perguntou se podia me contar um segredo, e eu nem cheguei a averiguar se era gatinho (mesmo que o fosse não teria chance com aquele tipo de cantada), fingi que não entendi o que ele tinha dito, disse qualquer coisa, desconversei e dei um jeito de cair fora sem parecer indelicada. Enquanto pagava a conta ainda recebi uma proposta de casamento de um típico sujeito-mala, escrita em um guardanapo de papel; limitei-me a afastar o guardanapo com a mão e nem olhei para a cara do indivíduo, o qual, segundo Beth, era gordo e bizarro. Ele disse: “Nem pensou?”. Respondi: “Tenho raciocínio rápido”. Ninguém merece uma mala gorda e bizarra como aquela, muito menos eu.

Minutos antes da cantada no caixa, DDI voltou para a pista, com ar de preocupado, mas, quando perguntamos o que havia acontecido, disse apenas: “coisas do Selvagem”. Continuou dançando e dando em cima de Bela. Beth, com apenas um olhar, perguntou em tom de afirmação “Vamos nessa?”; eu, já conformada com o fato de que não rolaria mesmo beijo na boca, balancei a cabeça respondendo que sim. “De qualquer modo, não foi em vão, a saída. Nada, nada, dançar faz bem para a alma e queima calorias”, pensei com meus botões. Pouco tempo depois, não pensaria da mesma forma.

Logo na saída da "Satélite", entendemos o que DDI queria dizer com “coisas do Selvagem”; este tinha encarnado sua personalidade Maçaranduba e estava distribuindo “porrada”. Além dos traços violentos, só revelados naquela noite, ele bem que tem uma semelhança física com o personagem do "Casseta & Planeta": é baixinho, marombado e tem a cara meio amassada (não chega a ser deformada) e os olhos esbugalhados. Não sei se estou sendo exata na descrição, porque não costumo ficar analisando cara feia, único ponto sobre o qual não tenho a menor dúvida: é feia mesmo. O alvo da “porrada” era o pobre DDD, que, creio eu, mais por amizade ao Selvagem do que para livrar a Loura do seu carrasco, tentava evitar que este cometesse uma loucura maior; para isso, acabou entrando no meio da briga e não saiu ileso. Pelo que deu para observar do nosso ângulo de visão, Lagartixa estava no grupo que procurava apartá-los.

Enquanto assistíamos à cena de longe, ainda sem entender direito o que estava acontecendo, fomos surpreendidas por Lantejoula Rosa, que, com sua voz rouca e agitada, nos pedia que déssemos um jeito de tirar Loura dali. Bonitinho chegou com a chave do Pegeaut da Loura, endossando o pedido de Lantejoula Rosa, já que eles não podiam ficar com o carro dela, pois moram na mesma área que o Selvagem. Apenas naquele momento, fomos informadas de que o Selvagem chegou a agredi-la e havia uma grande probabilidade de, mais tarde, ele ir atrás dela. Ele tinha deixado sua moto em casa; foi a própria Loura quem o levou para a "Satélite". No entanto, quando chegasse em sua residência e pegasse a motocicleta, certamente daria início à perseguição.

Loura entrou na conversa e, em seu desespero, mal conseguia responder nossas perguntas e muito menos tomar uma decisão quanto às possibilidades de fuga que planejávamos. Depois de escutar algumas sugestões não muito pragmáticas, acabei convencendo o grupo de que o mais sensato a fazer seria deixá-la na casa dos pais; eu dirigiria o carro da Loura, e ela iria no carro de Beth, que, finalizada a missão, me levaria para casa. Loura acabou acatando a decisão, mesmo tendo apresentado uma certa resistência: argumentava que teria de acordar seus pais, pois tinha deixado a chave de casa na residência do Selvagem; além disso, seu pai tinha 74 anos, e ela não queria lhe causar o constrangimento de vê-la naquele estado. Enfatizei que, com os pais, ela estaria protegida e que o problema precisava ser enfrentado. Ao saber que o Selvagem tinha ido embora, ela ficou mais tranqüila e concordou com a estratégia de fuga.

Bonitinho me passou a chave e nos agradeceu por termos aceitado a missão de que ficamos incumbidas. Eu, normalmente, fico tensa ao dirigir um carro alheio; numa situação como aquela, era pior ainda. Isso sem falar que o Pegeaut azul estava com todos os vidros abertos, e eu demorei um tempo para descobrir como fechá-los, o que só agravava a minha aflição. A imagem do Selvagem em sua moto, perseguindo o veículo que então era guiado por mim, não me saía da cabeça, e, mesmo tendo de seguir o outro carro, eu não tirava os olhos do retrovisor.

Achei estranho o fato de elas não terem subido a ladeira da Cruz da Redenção, mas Loura poderia perfeitamente morar pelas bandas do Acupe ou Beth poderia ter achado melhor ir pela Valdemar Falcão. Depois de passar pela entrada do Candeal, apesar de estranhar a rota, estava bem mais tranqüila, pois imaginava que logo deixaríamos a Loura, em Brotas, e pouco tempo depois eu já estaria deitada na minha caminha, distante de toda aquela atmosfera de fuga e perseguição. Em questão de segundos, o sonho da caminha se desfez, quando vi que a lanterna traseira da direita do carro de Beth piscava indicando que ela entraria no seu condomínio, em vez de seguir para a casa dos pais da Loura em Fuga, como havíamos combinado.

Entrei no condomínio de Beth e continuei seguindo o carro dela, até que, na área das quadras, ela fez sinal para que eu emparelhasse o carro e gritou: “Vamos parar para a gente conversar um pouco com ela”. Não havia outro jeito, soltei do carro, respirei fundo e me preparei para dar uma força à moça, embora não estivesse nem um pouco disposta a atitudes altruístas às 4h da madrugada. Até costumo regularmente ajudar meus semelhantes, mas acho que mesmo Madre Teresa de Calcutá titubearia diante de tal tarefa. Lembro de ter visto, na "Sagrada Família", em Barcelona, um cartaz em homenagem à Madre Teresa, que dizia: “Les obres d'amor son obres de pau" (esta última palavra significa paz, em catalão). Sendo assim, no meu caso, devido à carência de um pau para toda obra, era compreensível a falta de empenho em obras de amor ao próximo.

Beth, que andava mais bem servida nesse aspecto, pois engenheiros entendem de obras, procurava dar conselhos e ouvia pacientemente ao rosário de lamentações da Loura Aflita. A cada nova revelação, eu estremecia e não sabia se ria ou chorava à medida que os relatos prosseguiam. Havia semelhanças com a novela “Mulheres Apaixonadas”, mas Manoel Carlos, preso aos padrões globais, jamais escreveria uma história como aquela. O enredo ficava entre os roteiros dos filmes de Almodóvar e as simulações exibidas no programa “Linha Direta”. E não é que a Loura em Lágrimas estava com um figurino bem adequado ao estilo kitsch do cineasta espanhol: usava um cintão rosa que emoldurava a calça de jeans de cintura baixa e fazia conjunto com a sandália de salto alto de madeira, a qual possuía um nó, do mesmo couro sintético rosa, na altura do metatarso. Seus gestos, entonação e perfil psicológico não diferiam muito daqueles das personagens de “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos”. Vale ressaltar que ela também teve seu momento “Ata-me”, embora sem nenhuma conotação de fetiche sexual, e o que é pior: o responsável pelo ato está a anos luz de ser um Antônio Banderas.



É difícil evitar o sensacionalismo, diante de uma temática que envolve amor, ciúmes, escândalo e violência, mas sou uma jornalista séria e não quero expor a moça ao ridículo ou à comiseração pública. No entanto, não posso me furtar ao dever de relatar os fatos e os depoimentos que me foram feitos. Também acredito que tenho a responsabilidade social de chamar atenção para o absurdo da situação, para que outras pessoas, com experiências semelhantes, se conscientizem do mal que fazem a si próprias, procurem ajuda e tentem livrar-se do problema. Devo dizer também que os fatos serão aqui apresentados com base na versão da Loura e podem estar distorcidos. Caberia também ouvir o Selvagem para chegarmos mais próximo da verdade factual. Mas não quero correr os riscos que o jornalismo investigativo impõe; de maluco, quero distância.

Seguem alguns fragmentos da conversa, em formato de entrevista:

C.S. (sou eu, Cristiana Serra): “O que foi que aconteceu, você poderia nos explicar melhor?”

Loura: “Ele ficou louco, porque eu saí do banheiro distribuindo balinhas. Queria saber de onde elas vieram e começou a me empurrar. Um rapaz tentou me proteger, e ele ia partir para cima do garoto, quando chegou o segurança. O rapaz me disse: ‘esse cara não te merece’”.

(Aí, Beth falou: “Não te merece mesxxxxxmo!”)

C.S.: “E depois, ele te agrediu?”

Loura: “Na saída, ele me empurrou, e eu bati a cabeça na grade, num ferro. Depois caí, de frente, em cima dos cactos do jardim, estou cheia de espinhos na barriga”.

C.S.: “Ele costuma ser agressivo com você, já fez coisas parecidas outras vezes?”

Loura: “Não, ele é uma meiguice comigo, é super carinhoso, mas, de vez em quando, tem crises de ciúmes, surta e fica agressivo.”

C.S.: “Mas ele já te agrediu fisicamente, outras vezes, durante esses surtos?”

Loura: “Não, quer dizer, um pouquinho. Um tapinha ou outro durante uma discussão. Uma vez, estávamos no carro, e ele ficou batendo minha cabeça contra a marcha. Só isso.”

C.S: “Mas por que você se submete a esse tipo de coisa e fica com um cara como esse?”

Loura: “Apesar de tudo, sou apaixonada por ele. Eu preciso confessar uma coisa para vocês: eu sou órfã”.

C.S.: “Não íamos deixar você na casa de seus pais?”

Loura: “Na verdade, eles são meus tios, mas os chamo de pai e mãe”.

C.S.: “Mais um motivo para você deixar o Selvagem. Se você já conseguiu enfrentar um problema tão sério como a perda de seus pais, não vai conseguir dar um basta na situação e se afastar desse cara?”

Loura: “Eu amo o Selvagem e não suportaria mais essa perda; já perdi meus pais, meu tio que eu amava tanto e minha avó que era a pessoa mais importante da minha vida”.

E eu que sempre pensei que o sofrimento torna as pessoas mais fortes. Toda regra tem exceção, é verdade. Nesse meio tempo, minha mãe ligou, para saber onde eu estava. Expliquei-lhe rapidamente a situação e disse que ainda não sabia que rumo esta tomaria e como eu voltaria para casa. Àquela altura, eu já não tinha mais ânimo para continuar com a entrevista em forma de conselho e desabafo, e propus que tomássemos uma decisão: “Ou saímos agora para deixar Loura na casa dos tios-pais ou dormimos todas aqui na casa de Beth, pois estou morta de cansada”. Beth e a Loura optaram pela segunda alternativa. Liguei para casa, para avisar que seria obrigada a dormir na casa de Beth, e disse que ligaria assim que acordasse, para alguém me resgatar; naquele instante, quem queria fugir era eu.

No caminho da quadra até a casa de Beth, eu pensava no telefonema para minha mãe: “Meu Deus, toda essa história de Loura em Fuga, de dormir na casa de Beth, não poderia ser fruto da minha fértil imaginação, algo inventado como uma desculpa para dormir fora de casa, se eu tivesse encontrado o amor de minha vida ou mesmo um George Clooney (aqui me refiro ao ator mesmo, não ao rapaz da boate) que me levasse à loucura e com quem passaria a noite?”. Só na imaginação mesmo, pois a realidade era bem diferente: tive de dividir a mesma cama com Beth e a Loura. Minha paciência tinha chegado no limite, já não suportava mais a enxurrada de telefonemas, em sua maioria com Lantejoula Rosa, a qual fazia toda a cobertura, diretamente da toca do Selvagem, isso sem falar nas crises efêmeras e constantes de choro da Loura (começavam e acabavam de uma hora para outra, como criança pequena que cessa imediatamente o choro quando tem sua vontade atendida), e seus sobressaltos, causados pela impressão de ter ouvido um barulho de moto.

Para quem sonhava em passar a noite junto de George Clooney , não foi nada agradável ter de dormir toda espremida, pele com pele, bunda com bunda, ao lado de Beth; ainda bem que temos intimidade suficiente para isso, afinal são mais de 15 anos de amizade. Não sei se, no caso de Beth, a situação era a mesma na fronteira com a Loura; se era, acho bem feito, para ela aprender a pensar duas vezes antes de oferecer sua cama para uma desconhecida (ou nem tão conhecida, já que ela tinha estado com a Loura antes, em duas ocasiões). Foi aí que eu disse algo que ajudou a relaxar os nervos: “Se eu conseguir dormir, vou ter pesadelos com esse Selvagenzinho verde olhando para mim”. Eu me referia a uma máscara verde à minha frente, que Beth fez para o curso de teatro e que tinha alguma relação de semelhança com o Selvagem, sua cara era tão feia quanto à dele. Beth teve uma crise de riso e foi acompanhada por mim. A cama toda sacudia, nem a Loura conseguiu se conter. Passada a crise, meu abdômen doía de tanto rir, Beth ainda tinha breves explosões de riso, e com isso ficamos mais relaxadas e fomos rendidas pelo sono e o cansaço.

Lá pelas tantas, com o dia já claro, notei que a cama tinha ficado mais folgada. Loura resolveu deitar-se no chão. Segundo nos contou, enquanto dormíamos, ela ficou rezando um terço. Acho que, para ver se a Loura parava de falar que não conseguiria dormir, Beth lhe deu um terço que ficava na cabeceira da cama. “Você é religiosa? Então se apegue com Ele. Ele é óóótimo, nessas horas!” Lia-se, no balãozinho imaginário sobre sua cabeça: “Shut your mouth e deixe a gente dormir que eu também já estou de saco cheio, embora seja responsável por você estar aqui”.

Já ia esquecendo de mencionar que, antes da crise de riso, a última notícia do Boletim de Lantejoula Rosa era a seguinte: “DDD deixou o Selvagem em casa, e este saiu para surfar com um amigo”. Isso era demais para mim: DDD, coitado, todo arrebentado, eu e Beth sem dormir tendo que aturar a Loura, e a peste do Selvagem, na praia, surfando! Me bata um abacate e me faça uma garapa, só para combinar com a máscara verde e a parede de cor pistache do quarto de Beth!

Por volta das 8h ou 9h, o noticiário anunciava: “Selvagem vai à casa dos pais-tios e é recebido com suco e bolo pela mãe-tia da Loura”. Eu de jejum, e Maçaranduba comendo bolinho! Tudo bem, bolo engorda, e minha amiga, dona da casa, não deixou de me oferecer suco de laranja e sanduíche com pão e queijo light, servidos no quarto. O celular de Beth também não teve sossego. Até o Selvagem resolveu ligar e falou todo meiguinho com ela, na tentativa de obter alguma informação sobre o paradeiro da Loura; obviamente, sem sucesso.

Enquanto Loura decidia o que fazer e onde ficaria refugiada, novas revelações eram feitas, tais como:

1) “Estou pagando até hoje uma jóia que comprei para a mãe dele”.
2) “No dia do meu aniversário, ele disse que queria terminar o relacionamento. Logo depois, fizemos amor, e ele me deixou em casa. Eu achava que diante das circunstâncias não tínhamos terminado. Mas ele se mandou para o Sauípe Folia. Disse que não foi, mas tenho certeza de que foi sim”.
3) “Eu dei para ele uma prancha de R$ 650,00”.
4) “Eu uma vez tentei convencê-lo a ir comigo para Igreja. Ele odeia psicólogo”.
5) “No dia do aniversário dele, fui ao shopping comprar um presente. Mais tarde, estava fazendo brigadeiros junto com uma amiga, quando ele falou para eu mandar minha amiga embora. Eu fiz o que ele pediu, achando que ele queria ficar sozinho comigo. Quando ela saiu, ele surtou, me amarrou, me amordaçou e começou a dizer um monte de coisas”.

Gostaria de ter feito, naquela ocasião, os seguintes comentários, referentes a cada uma das revelações:

1) Nunca comprei uma jóia para mim com meu dinheiro, que dirá para uma sogra.
2) Terminar com ele era o melhor presente de aniversário que ela poderia receber. Mas se deixou levar pelos versos de Leandro ainda com Leonardo: “Entre tapas e beijos, é ódio, é desejo, é sonho, é ternura, um casal que se ama até mesmo na cama provoca loucuras. E assim vou vivendo, sofrendo e querendo esse amor doentio...”
2.1) Para o Sauípe Folia, ele foi mesmo. Além das provas testemunhais, entre as quais incluem-se meu depoimento e o de Beth, há fotos e registros em vídeo.
3) Dizem que surfar acalma os nervos. Nesse sentido, a prancha pode até ser considerada um investimento. Mas eu nunca dei um presente desse preço para meu ex-namorado, que me tratava muito bem e com o qual passei quase 9 anos.
4) No caso do Selvagem, um psiquiatra seria o profissional mais indicado; mas, diante da resistência a esse tipo de tratamento, em vez de levá-lo à Igreja, seria mais eficiente procurar uma rezadeira, um caboclo, para tirar o encosto, ou tentar, em última instância, um exorcista.
5) “Tapinha não dói” só em uma sessão sadomasoquista com George Clooney, mesmo assim, com restrições. Amarrada e amordaçada, só se fosse por Antônio Banderas e a meu pedido: “Ata-me, gostoso!”.







Beth deve ter sido contaminada pela insanidade, por ter dormido junto da Loura, ou queria livrar-se dela a qualquer custo e, tomada pelo desespero, ofereceu-lhe seu village em Praia do Forte como refúgio. “Você pode ficar lá”. No entanto, para meu profundo pavor, a primeira opção configurava-se como a mais provável. Minha querida amiga começou a delirar: “Cole na gente, você vai se divertir muito e esquecer de vez esse Selvagem que não te merece. Por que você não vai para Itacaré conosco, no próximo fim de semana? Cris, por enquanto, vai ficar sozinha no quarto”.

Diante da última frase, gelei. Deus me livre viajar para dividir um quarto com uma desequilibrada que se deixa amordaçar, depois de já ter levado umas pancadas na cabeça contra a marcha do carro. E tudo por amor a uma criatura com a cara igual à da máscara verde e parecido com Maçaranduba, inclusive no aspecto mental. E se o Selvagem inventasse de aparecer por lá? Socorro, Okearô, meu pai, Oxossi!!! Me livre dessa. A sorte é que, quando a Loura foi embora, Beth recuperou seu juízo.

Eu já estava a ponto de enlouquecer, quando o telefone tocou mais uma vez, era o fixo do quarto de Beth. Lyly estava na linha e queria saber se eu iria para a praia com ela. Suspirei aliviada, tratava-se então de planejar a minha fuga. “Oi, minha querida”. “Cris, o que aconteceu, liguei para sua casa, e sua irmã me disse que você estava aí, a cachaça foi tanta assim que você teve de dormir na casa de Beth?”. “Antes fosse, antes fosse. Você não sabe a noite terrível que passei”. “O que foi? Conte tudo!”. “Depois, depois...”. “Conte agora ou vou ter uma síncope de curiosidade”. “Não dá”. “Tem alguém aí do seu lado? Você não pode falar?”. “Isso”. E eu não podia satisfazer a curiosidade da minha amiga, e ao mesmo tempo não conseguia disfarçar o meu incômodo. Acertei tudo com Lyly: ela passaria na casa de Beth para me pegar; em seguida, iríamos rapidamente até minha casa, para eu colocar um biquíni, e, finalmente, seguiríamos para a praia.

Quando ela ligou novamente e disse “Estou saindo, fique pronta”, vi que a libertação se aproximava. Cerca de quinze minutos depois, Loura gritou: “Ai, meu Deus, um barulho de carro. Olhe aí na janela”. Não era mais um de seus sobressaltos, era o carro de Lyly e o fim do meu suplício. Me despedi de Beth, falei com a Loura, desci correndo as escadas e saí da casa com a mesma roupa da noite anterior. Só não corri até o carro, porque estava de salto alto. Iniciava-se um novo filme: “A Fuga da Morena para Honolulu[4]”.

Além de Lyly, Fabiane e Paulete estavam no carro, e todas elas aguardavam ansiosamente o relato dos fatos. Como estava entre amigas, atendi ao apelo da audiência e dei início à primeira edição do Fofoca Alerta, até chegar o esperado momento de me purificar nas águas de Iemanjá.

Salvador, 10 de novembro de 2004

Cristiana Serra, em pleno dia de trabalho, a poucos minutos de sair para dar aula, grata por não saber até então o que aconteceu com a Loura depois do último sábado.

[1] Josy e Beth inventaram essa denominação, inspiradas no protagonista de um desenho animado. Segundo elas, o nome do desenho, que é o mesmo do personagem, é “Joselito, um garoto sem limites”.
[2] Esse era o nome da boate para a qual fomos naquela noite e que hoje não existe mais. No lugar dela, funciona um bar.
[3] A semelhança entre os nomes (Josy e Joselita) talvez seja mera coincidência.
[4] Honolulu era o nome da barraca de praia para a qual iríamos

2 comentários:

Eduardo disse...

Muito divertido, vc tem uma forma muito simples de escrever.O leitor tem a sensação de estar vivenciando tudo.Parabéns.Quem sabe um dia nos encontramos por aí...Já te vi em foto..rs.

Cris disse...

Oi, Eduardo! Você se tornou mesmo um leitor assíduo! Fico muito feliz com isso. Se você me reconhecesse na rua, em função da foto, como a moça do blog, aí eu me sentiria como uma celebridade!rs rs
Acasos acontecem. Afinal, foi assim que você chegou a esse blog. Obrigada pelos comentários.
Um abraço