21 de setembro de 2010

A autotransformação é o primeiro passo para a mudança externa

O textinho a seguir (e que minha amiga Karla me pediu para compartilhar, após a resposta que escrevi para um e-mail que nos foi endereçado) é um mix de idéias que circularam e ressoaram em conversas, reflexões, desabafos, DRs, leituras, palestras no centro espírita e toda a sorte de experiências pessoais e alheias.


No fundo, todas essas idéias estão em várias mentes, muitos registros, diversos relatos; afinal, a fonte acaba sendo a mesma, e, a depender do nosso nível de compreensão, percepção, elevação moral, elas farão mais ou menos sentido, e num determinado momento vão surgir de nós, de algum lugar, como se tivessem saído de nossas próprias mentes.

Antes, uma ressalva em forma de agradecimento (ou um agradecimento em forma de ressalva): além dessa fonte que é de todos e de ninguém, todos os créditos cabem ao meu melhor amigo, que coincidentemente (ou não) se tornou o meu amor e me falou ou me fez pensar sobre o que escrevi abaixo.


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Precisamos estar atentos para não repetir os mesmos erros, atrair as mesmas coisas e fazer dos velhos hábitos (queixas, carências...) o nosso estilo de vida (Mude! Veja esse vídeo no Youtube: http://www.youtube.com/watch?v=HiEKCN32FB8&feature=related).

Determinadas experiências, ainda que nos pareçam, em princípio, desagradáveis, talvez sejam uma oportunidade para pensarmos na forma como nos comportamos nos nossos relacionamentos e diante da vida de uma forma geral.

Nesse caso, não há receita, não há certo nem errado, mas temos de pensar se estamos agindo de modo a permitir que aquilo que desejamos se concretize. Muitas vezes, queremos uma coisa, mas a forma como pensamos, sentimos e nos comportamos nos distancia daquilo que queremos.

E é impressionante como temos a tendência de repetir determinados padrões. (Mude! E se ainda não viu, veja esse vídeo no Youtube: http://www.youtube.com/watch?v=HiEKCN32FB8&feature=related). Penso na minha experiência, na de outras(os) amigas(os), e vejo como isso ocorre com frequência.

Temos uma responsabilidade muito grande em relação ao que acontece conosco. Se queremos viver algo novo, algo que promova uma mudança na nossa vida, nas nossas relações, o primeiro passo é a autotransformação (Mude!).

Nos relacionamentos amorosos, por exemplo, o apego, a carência e a necessidade de controle são os principais fatores geradores de conflitos e desencontros de expectativas. O amor, na vida cotidiana, requer uma construção contínua exatamente pela necessidade de aceitação da imperfeição do outro e da própria imperfeição.

E amor de verdade, em sua essência, implica necessariamente em aceitar a vulnerabilidade, os riscos (de não ser correspondido, de perder, de sofrer, de magoar e se magoar...), exige esforço, entrega e doação. O verdadeiro amor não espera nada em troca, não impõe limites nem condições. (E isso é bíblico. Vide a carta de Paulo aos Coríntios. Nesse vídeo no youtube, o velho Cid Moreira, com sua voz de apresentador do JN e dos truques do Mister M, narra o trecho que fala sobre o amor: http://www.youtube.com/watch?v=edLTGEHQvy4 ) É muito difícil aceitarmos isso, pois buscamos sempre o lugar de conforto, a segurança, a estabilidade, o controle, mas, no fundo, tudo isso é ilusão.

Essa condição de vulnerabilidade é da natureza da própria vida, só temos controle sobre as nossas escolhas e sobre a forma como reagimos às circunstâncias - é o tal princípio do livre-arbítrio -, todo o resto independe da nossa vontade. Sendo assim, o melhor meio (talvez o único) de promover a mudança em nossas vidas, nos outros, no ambiente que nos rodeia, é através da autotransformação.

Uma idéia tem sido bastante recorrente nas coisas que eu tenho lido, ouvido: a de que só existem duas grandes forças, a do amor (que é ilimitada e transformadora) e a do medo (que é restritiva e paralisante). E é preciso estar o tempo todo atento sobre como cada uma delas está presente em nossas vidas e pauta nossos comportamentos, escolhas e decisões.

Vamos sempre oscilar de um pólo para o outro, mas, se não estivermos atentos a esse movimento que acontece o tempo todo, corremos o risco de ficarmos paralisados pela energia do medo. Isso vale pra você, pra mim, pra todo mundo.

Também precisamos nos defrontar com os nossos fantasmas, para afugentá-los, em vez de nos comportarmos como se eles não existissem.

Tudo o que acabei de dizer pode soar como conselho, mas também, e sobretudo, é auto-reflexão. Espero que faça sentido para você e que tais idéias tenham ressonância a ponto de gerar novos relatos, novos desabafos, conversas e reflexões, e venham a surgir novamente e de novas formas em outras mentes.

9 de julho de 2008

"50 dias em 5": histórias do Planalto Central

O bordão "50 anos em 5" foi o mote da campanha que levou Juscelino Kubitschek a assumir a Presidência da República, em 31 de janeiro de 1956. O conhecido slogan se tornou o lema da política desenvolvimentista que marcou o governo JK e do chamado Plano de Metas, cuja meta-síntese era a construção da nova capital federal.

Se eu tivesse de criar um Plano de Metas como parte da minha estratégia de desenvolvimento pessoal, certamente, viajar, conhecer pessoas e fazer novas amizades estariam entre os objetivos permanentes a serem cumpridos ao longo dos próximos 50 anos. Também poderia tomar de empréstimo o slogan de Juscelino para definir, na devida proporção, a viagem que fiz a Brasília, no dia do meu aniversário. Pela quantidade de experiências que vivi, pela diversidade de histórias que ouvi e pela qualidade das pessoas que conheci, posso, sem dúvida, afirmar que foram "50 dias em 5" de pura diversão.

Pela mobilização de energia em agitos (leia-se "reggaes", no baianês, e "baladas", no candanguês), dá para dizer que foi o equivalente a um carnaval fora de época, afinal, saí, de sexta à noite à madrugada de terça, quase sempre voltando para casa (leia-se apartamento de Naiana ou de André, amigo de longa data e hospedeiro de Lena) na alvorada, para usar uma palavra bastante utilizada por JK.













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O seguinte texto ocupa a parede dourada do hall de entrada do Palácio da Alvorada:




“Deste Planalto Central, desta solidão que em breve se transformará em cérebro das mais altas decisões nacionais, lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã do meu país e antevejo esta alvorada, com fé inquebrantável e uma confiança sem limites no seu grande destino”.
Juscelino Kubitschek, 02/10/56


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Com uma fé inquebrantável de que me divertiria muito, meu cérebro tomou a mais alta decisão de comemorar meus 32 anos, no planalto central, junto com duas grandes amigas e outros amigos que hoje residem na capital federal, e mais alguns que ainda iria conhecer. Lena iria a Brasília fazer um concurso público, no dia 06 de julho, e Naiana, que foi minha colega de sala no Colégio São Paulo, mora lá há 7 anos e, assim como eu, faz aniversário no dia 4 de julho (também nasceu no mesmo ano, e celebramos juntas os nossos 30 anos, numa comemoração inesquecível, durante a Copa do Mundo, na Alemanha).

A bem da verdade e para ser mais fiel à realidade, Lena e Naiana, tendo em vista os fatos mencionados, meses antes, resolveram, ao se encontrarem numa pizzaria na primeira capital do Brasil, que esse seria o meu destino; eu apenas ratifiquei a decisão.

Mais uma vez, em grande estilo, comemorei meu aniversário com Naiana, sob a promessa de que isso tornar-se-á (curtiram a mesóclise?), a partir de agora, uma tradição e também pude conhecer, desta vez com mais calma, as obras de Niemmeyer, estas patrimônio da humanidade. Mas o que acho mais bacana de fazer uma viagem quando se conhece gente que mora no lugar é a possibilidade de se sentir "local", como diz minha amiga Lena.

Além dos programas turísticos obrigatórios, fiz uma série de coisas que, normalmente, só um candango ou alguém que mora em Brasília há mais tempo faria: não paguei o suco e o crepe que comi no dia do meu aniversário, na creperia mais badalada de Brasília (isso porque Naiana sabia desta promoção exclusiva para os aniversariantes); malhei com Lena (fizemos um percurso de 6km), no Parque da Cidade; fui para uma festinha fechada (chamada "Mistura Fina" e promovida pelo DJ Chico) que só acontece quatro vezes ao ano, com Jaime e seus amigos, os quais, gentilmente, colocaram nossos nomes na lista; no dia seguinte à festa, fui com Naiana e um dos novos amigos para um churrasco, numa casa de madeira, em construção, no alto de um morro, num condomínio que fica a uma hora do centro de Brasília, e de onde se pode apreciar uma paisagem belíssima do cerrado; e, em plena segunda-feira, enfretamos uma fila, por quase duas horas, para conseguir entrar no Calaf, bar que bomba em Brasília, especialmente nesse dia, para comemorar com a galera o aniversário daquele novo amigo que nos levou para o churrasco.

Fora todos esses programas, entre as várias experiências vividas na capital federal, não poderia deixar de falar sobre os personagens muito interessantes que conheci. Aliás, a meta-síntese desse texto é justamente fazer uma breve apresentação de cada um deles, ressaltando seus traços de personalidade e idiossincrasias, assim como, contar algumas histórias das quais foram protagonistas.

Breu e The Strongest

Na saída do Boca Negra, onde comemoramos o nosso aniversário (meu e de Naiana), encontramos a dupla Breu e The Strongest. Eu estava com uma de minhas amigas na porta, aguardando a outra pagar a conta, para que pudéssemos providenciar um taxi para voltar para casa, pois, em função da Lei Seca, não tínhamos ido para lá de carro. Quando fico bêbada, um dos sintomas, fora o de abrir um sorriso constante mostrando todos os dentes, é ficar repetindo várias vezes a mesma coisa, como o papagaio da EBEC (escola de inglês que tem a ave como símbolo e a repetição como metodologia pedagógica). E eu dizia "Minha conta deu R$ 93,00". Again: "Quanto foi mesmo a entrada? 10 R$? Porque eu paguei R$93,00". Once more: "Devo ter tomado no máximo 3 ou 4 Margaritas, sempre acompanhadas de água. Será que foi isso mesmo? R$ 93? Estou achando muito". Once again: "Lena, a sua deu quanto? A minha deu R$ 93,00. Quebrança". Ou seja, todas as pessoas que estavam na frente do bar sabiam o valor da minha conta no Boca Negra.

Como bêbado faz o que dá na telha, nesse intervalo de tempo, tirei as sandálias, pois meus pés estavam doendo. Foi aí que The Strongest se aproximou e puxou conversa, meio que se engraçando para o lado da amiga que estava comigo. Quando vi a camisa dele, comecei a perturbação. Pressionava o indicador, contra o peito dele, em cima de cada letra, lendo o que estava escrito como se fosse criança recém-alfabetizada: "The-S-troon-g-est. Opaí ó, se achando o fortão". Obviamente, como o papagaio tinha se apossado do meu espírito, fiz isso algumas vezes; não sei como não apanhei. O rapaz não era propriamente O Fortão, mas acabaria em dois tempos com a minha raça.

Mas o bichinho era bonzinho e estava todo meiguice com minha amiga. Tanto é que nos ofereceu carona, quando nossa outra amiga chegou. Não tenho certeza se Breu já estava conosco durante esse tempo todo; só tenho a lembrança da pessoa e do apelido dele, quando já estávamos todos no carro. As meninas, que estavam um pouco melhores do que eu, acharam que os rapazes eram confiáveis e aceitaram (pode ser até que elas mesmas tenham pedido; disso não tenho certeza também) a carona.

A uma certa altura, Breu nos informou que teria de acordar cedo, para levar a filha ao zoológico, e foi aí que eu encarnei no coitado, com a história dos macacos e leões: "Breu... É Breu mesmo seu apelido, né? Por que, hein? Quer dizer, não precisa dizer, porque isso não vem ao caso. O caso é o seguinte. Se você for ao zoológico com sua filha, não leve a menina para ver os leões. Os leões são bichos muito arrogantes, se acham os reis. Você tem de levar sua filha para brincar com os macacos que são animais mais evoluídos, mais próximos do homem. Os macacos são divertidos, têm senso de humor. Leve a menina para brincar com eles".

Fiquei repetindo essa ladainha, com a voz embolada e acentuando os plurais, pronunciando todos os "s", com som de "x", "oxxxx macacoxxxxx e oxxxx leõexxxxx", até apagar completamente, usando uma sacola vermelha onde estavam os presentes de Naiana, como travesseiro. Só acordei (para ser mais exata, fui acordada, após algumas tentativas sem sucesso) na porta do prédio de Naiana.

Estava tão desnorteada que nem conseguia calçar minhas lindas sandálias vermelhas. Me senti a Cinderela, quando The Strongest, que, a partir desse momento, eu deveria passar a chamar de The Kindest, se ajoelhou e colocou as sandálias nos meus pés. Fez questão de me levar até o elevador e ainda perguntou se queríamos que ele subisse para nos deixar na porta do apartamento. Agradeci, disse que ele era um amor de pessoa, mas que não havia necessidade, porque eu já estava bem. Ele só foi embora, porque Naiana estava comigo e em melhores condições do que eu, e disse a ele que não precisava se preocupar.

Quem ficou preocupada, no dia seguinte, foi Lena, que tinha ficado antes, no apartamento de André, onde estava hospedada. Eu e Naiana dormimos até 15h e não ouvimos as ligações dela. Lena ficou tão agoniada que ligou para The Strongest, para se certificar de que ele nos tinha deixado em casa conforme havia combinado. O rapaz, tão solícito e atencioso, a tranqüilizou, relatando minuciosamente toda história, desde o momento que me calçou, até o fim do percurso ao elevador.

Pegador, erroneamente conhecido como Tadinho de Minas

Pegador é mineiro de nascença e o único dos personagens que já era meu conhecido, pois morou um tempo em Salvador, antes de ir para Brasília. No caso dele especificamente, posso afirmar, com toda convicção, que a primeira impressão não foi a que ficou. Nas vezes em que estive com ele, em Salvador, devo confessar que o achei metido a Toddy (gíria bizarra e anacrônica usada por meu pai e minhas tias), para não dizer boçal, que é uma palavra muito forte.

Não sei se foi a mudança de ares ou o fato de que as aparências realmente enganam; o certo é que, em Brasília, pude constatar o quanto ele é (ou se tornou, quem sabe) um cara agradável, sociável, admirável, adorável e mais não sei quantos adjetivos com sufixo "ável", além de gente boa, finíssima, da melhor estirpe, e digo isso sem receio de ser criticada pela repetição e redundância.

De Tadinho ("Tadim", como se fala em Minas), Pegador não tem nada: é inteligente, tem um bom emprego e está saindo com cinco mulheres ao mesmo tempo. Não foi para o nosso aniversário, pois estava numa missão importante (leia-se foi "dar uma") com uma delas, que, segundo ele, é gata, muito gata.

Engenheiro ótico

Gatinho mesmo era o engenheiro ótico que Pegador nos apresentou. Até então, nunca tinha ouvido falar dessa especialização, cujas principais atividades ele paciente e didaticamente nos explicou, após eu ter perguntado o que faz, na prática (meio na linha das informações que vêm no "Guia do Estudante"), um profissional dessa área. O rapaz morou nos States e deve ter sido lá que aprendeu a profissão por mim desconhecida. Simpatizei mais ainda com Engenheiro Ótico, quando começou a falar de uma peça adaptada do livro "Conversando com anjos", cujos diálogos fizeram com que ele passasse a acreditar em Deus. Falar de teatro e literatura, a meu ver, é um elemento sedutor num homem (ainda mais sendo engenheiro).

Fora isso, o mocinho, diferentemente dos amigos, fazia o tipo reservado, o que também contribuía para aumentar sua cotação no mercado. Pena que ele não me deu mole e preferiu se render aos encantos da Gêmea Má (como Raquel e Taís), assim apelidada, somente pelo fato de que eu, na condição de autora da história das irmãs gêmeas, não poderia atribuir a mim outro papel que não fosse o da Gêmea Boa (como Ruth e Paula).

Por sinal, a Gêmea Má teve uma atitude eticamente irrepreensível e, por mais que o desejasse, só cedeu às investidas do Engenheiro Ótico, depois que eu dei sinal de que o caminho estava liberado. Apesar do meu interesse inicial, uma vez que ela era "A Favorita", como o título da atual novela da Globo, seria muito justo que ficasse com aquele que havia conquistado, ainda mais depois de ter demonstrado ser uma amiga tão fiel.

Joca, o peguete da Smurfete

Estou na dúvida quanto ao codinome que darei ao personagem que ficou com a que foi apelidada pelos amigos dele de Smurfete. Na vila dos Smurfs, aquele que sonhava com a Smurfete e fazia declarações de amor para ela se chamava Smurf Apaixonado. Mas acho que o perfil do cidadão cuja história irei narrar se aproxima mais do smurf que, em português, recebeu o nome de Joca (no original, ele é chamado de Jokey). Para quem não se lembra, Joca era o smurf que zoava com todo mundo e tinha como brincadeira preferida oferecer presentes que explodiam na cara. Em função desse hábito, Joca levava bronca dos outros smurfs e suas brincadeiras acabavam virando contra ele.




Dilema resolvido: o personagem de que tratarei agora terá o codinome de Joca, pelo fato de ele ser meio maluquinho e de ter sido alvo de chacota dos amigos após ter ficado com a Smurfete. A menina que ele pegou, para usar um verbo próprio do vocabulário deles, foi chamada de Smurfete apenas pelo fato de ser loura e baixinha. Diferentemente da garota-smurf, esta não despertou a cobiça dos outros machos. Muito pelo contrário, um deles, o Baiano que estudou no Colégio São Paulo (achei que ele tinha uma cara conhecida, mas não me lembrava dele, muito provavelmente, por ele ser dois anos mais novo do que eu), no instante em que a viu, comentou com o amigo que estava do lado: "Que marmota é essa?". E assim descreveu a Smurfete: "Ela andava como um pinguim, passou tanto blush, que parecia que tinha um semáforo na cara. E detalhe, a feiosa se achava a gostosona e ainda era chata. Diante de tanta chatice e tiração de onda, não perdoei e, para reduzi-la à sua insignificância, disse para ela, mais de uma vez: Você não se parece com nada".

Colecionador, que logo mais será devidamente apresentado, se pronunciou em defesa do amigo, mas, claramente, em tom de esculhambação: "O cara tem de ser muito macho, muito macho mesmo, para pegar uma mulher como aquela Smurfete. Não era pó o que ela usava no rosto; sobre a pele havia uma camada branca tão espessa que parecia massa de rebocar parede. Você precisava ver o brinco de oncinha que ela esqueceu no apartamento de Joca. Uma coisa horrível."

Nisso, Colecionador tinha toda razão. Depois da festa "Mistura Fina", fomos ao apartamento de Joca comer uma pizza, e eu pude ver com meus próprios olhos o brinco da Smurfete. A parte que se encaixava na orelha tinha uma forma redonda, mas sem ser esférica, era uma superfície plana, revestida de um tecido horrendo, com estampa de onça. Uma tira vertical de strass, sobre o tecido, fazia as vezes de raio do círculo. Desta primeira bola, digamos assim, para facilitar a descrição, pendia um fio, de, mais ou menos, 6 cm, que a prendia a uma outra bola, idêntica, só que 3 vezes maior. Juro que me esmerei na descrição daquela coisa exótica que demos o nome de brinco e aproveito o ensejo para fazer alguns pedidos:

1) Engenheiro ótico, por favor, me corrija se usei algum termo inadequadamente. Eu até me virava bem em matemática, mas entender de geometria não faz parte das minhas melhores habilidades;

2) Joca, se o brinco ainda estiver na sua casa, por favor, tire uma foto e mande para mim, para que eu possa publicá-la aqui no blog, de modo a conferir mais realismo a este relato;

3) Se algum desenhista conseguir, a partir desse retrato-falado que fiz do brinco da Smurfete, esboçar uma imagem do referido objeto, faça a gentileza de enviá-la para mim. Se esta for fiel à imagem que guardo na memória, também me comprometo a publicá-la, para que sirva de ilustração.

Como jornalista, pedi a Joca que apresentasse a sua versão em relação aos fatos narrados por seus amigos, mas ele preferiu não se pronunciar, tampouco negou as informações. Somente fez questão de deixar claro que Smurfete apenas dormiu no seu apartamento, no puff, enquanto ele foi deitar em outro cômodo na companhia do Colecionador, e, fora os amassos que ocorreram no mesmo puff que serviu de cama para a menina, não rolou uma intimidade maior entre eles. Ou seja, num português claro e chulo, segundo Joca, ele não comeu a Smurfete.

Colecionador confirmou o fato de que dormiu no mesmo quarto de Joca e apresentou outros detalhes: "Realmente, eu testemunhei a cena no puff", disse ele fazendo o gesto de embaralhar as mãos, entrelaçando os dedos. "Mas, mais tarde, Joca foi dormir no quarto dele, onde eu estava, e a Smurfete ficou lá, no quarto da televisão, roncando, deitada no puff. Eu dormi na cama, e ele, por sua vez, armou a rede, num nível acima, sobre mim. A família de Joca é do Nordeste, e, na casa dele, há esse costume de dormir em rede. Para falar a verdade, nem dormi. Fiquei deitado no nível de baixo, só escutando e sentindo o bombardeio que vinha lá da rede", nos relatou Colecionador, com seu jeito engraçado de contar histórias.

Colecionador de Calcinhas

Acredito na veracidade do que foi narrado por Colecionador, até porque a sinceridade é um traço marcante nele. Só não entendi direito onde dormiu a outra menina, que era amiga de Smurfete e tinha ficado com ele. Aliás, a relação entre ele e essa garota é um tanto ambígua e contraditória. Explico:

1) Ele ficou com a dita cuja antes de chegar no Boca Negra, no dia do nosso aniversário. Pegador já havia avisado a ele que Linda River, por quem Colecionador nutria uma paixão platônica, que dias depois tornou-se concreta, também estaria lá. Mesmo com a ficante a tiracolo, perguntou para várias garotas que estavam no bar: "Você é Linda River?". Quando, finalmente, encontrou a famosa Linda River, perdeu completamente qualquer noção de conveniência. Explicou a situação à sua musa e chegou a propor que fossem conversar em outro lugar, longe da vista da amiga da Smurfete.

***

Por falar em Smurfete, esta também se encontrava no Boca Negra (pelo visto, quase toda a população de Brasília estava lá) e, antes de ficar com Joca naquela mesma noite, já tinha trocado beijinhos e abraços com outro amigo de Pegador, conhecido como Paraíso. Depois dizem que Salvador é um ovo; em Brasília, o cenário não parece ser muito diferente. Como Paraíso foi embora mais cedo, a fila de Smurfete andou. E olhe que ele até tinha dado valor à feiosa (uso aqui esse adjetivo com base nas várias informações que obtive a respeito dela).

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2) Naquela noite, alguém tinha derrubado o teto do Boca Negra, e uma garota havia sido atingida na cabeça. Soube até que Linda River, generosa que é, socorreu a vítima, colocando gelo no lugar do machucado. No dia seguinte, Pegador nos disse que foi Colecionador quem provocou o acidente. Quando eu soube que a menina sobre a qual o teto havia caído era a amiga de Smurfete, perguntei a Colecionador por que ele não cuidou da sua acompanhante. E ele respondeu: "Quatro seguranças partiram para cima de mim, eu ia, por acaso, prestar atenção no que tinha acontecido com a mulher. Ah, quer saber, foda-se".

3) Apesar da atitude negligente (observem que usei um adjetivo bem light, para qualificar um comportamento inadmissível) para com a tal menina, quando falava sobre ela, Colecionador parecia até o Smurf Apaixonado. "Olhe, vou lhe dizer, ela era uma coisinha muito linda. Linda, linda, linda. Smurfete era horrorosa, mas a amiga dela... Era gata, muito gata". Interrompendo a série de suspiros e elogios, o irmão de Joca, que, assim como eu, estava ouvindo toda a história, perguntou: "Me diga uma coisa, essa é a mesma que você estava chamando de puta e acusando de ter roubado seu relógio e o dinheiro da sua carteira hoje de manhã?".

Como Colecionador é um cara super sincero, assumiu o erro, na frente de todos os presentes: "Chamei de puta, chamei de vagabunda, porque pensei que ela tinha roubado meu relógio, mas depois o achei em outro lugar. E o dinheiro da carteira ela pegou mesmo, mas foi para pagar a conta, já que os seguranças não largavam do meu pé, dizendo que eu tinha de dar quinhentos contos para cobrir o prejuízo do acidente com o teto. Sei lá como aquela porra caiu, eu devo ter me apoiado, sei lá. Só sei que, nessa confusão, além da minha conta, a menina deve ter pago a dela e a de Smurfete. Linda ela era, só não chegava aos pés de Linda River, é claro".

Encerrado o assunto "Smurfete e sua amiga", Colecionador passou a falar sobre como conheceu Joca. Antes, para efeito de esclarecimento e contextualização, cabe dizer que todas essas histórias foram narradas na mesa do bar do Mormai, que fica no Pontão, um centro de lazer, com lojas, bares e restaurantes, situado às margens do Lago Paranoá. Na ocasião, estavam presentes: Colecionador; Joca e seu irmão (o já mencionado Engenheiro Ótico); Pegador; Baiano do Colégio São Paulo; Defensor de Joca (amigo deles que só se pronunciava para defender Joca); e as meninas baianas (eu, Lena e Naiana).

Voltemos ao relato sobre o ínicio da amizade entre Joca e Colecionador, na versão deste último:

"Quando eu conheci Joca, ele não tinha amigos. Tanto é que ele morava em outra quadra e só vivia na minha, pois não se relacionava com o pessoal da dele. Sem brincadeira, o telefone dele nem tocava. Simplesmente, ninguém ligava para ele. Foi aí que ele percebeu o potencial da minha amizade e passou a freqüentar a minha casa, inclusive quando eu não estava. Tocava a campainha, a mamãe abria porque era meu amigo, e ele ficava lá, tomava banho de piscina, almoçava e, quando eu chegava em casa, batia com ele, no meu quarto, vestido com minhas roupas e, ainda por cima, sem ter tomado banho".

Perguntei a Joca se isso era verdade, e ele, que é aparentemente um rapaz de poucas palavras (e, pelo visto, de muita ação, pelo menos, com a mulheres), se limitou a responder:

"É porque eu pegava Lailiane, a irmã dele".

Diante dessa afirmação, Colecionador protestou:

"Mentira dele. Lailaninha é uma deusa junto desse traste. Onde já se viu uma mulher linda como Lailaninha... ela é uma princesa, não ia olhar para um cara que nem banho toma, quase um mendigo, ao lado dela".

"A gente namorou, ele é que nunca soube que eu dava uns amassos na irmã dele", disse Joca.

"Que você tentou agarrar Lailaninha isso eu sei. Eu estava tomando banho, e ela ficou me gritando, dizendo que você entrou no quarto dela e queria agarrá-la à força. Ela fugiu para o quarto da mamãe, achando que lá você não entraria, por respeito à mamãe. Não é que o safado entrou. Cheguei lá, estava Lailaninha num canto, encurralada, bem no vértice, e esse sujeito lá enchendo a paciência da minha irmã, no quarto da mamãe, pode?", falou o Colecionador, antes de começar, na seqüência, a exaltar a nobreza e a beleza da irmã querida.

"Dos cremes da Lancôme você não fala", disse Joca, na tentativa de desviar o foco para um novo assunto polêmico.

Mas Colecionador nem se abalou: "Fale, pode falar que não tem problema".

"A gente tinha ido acampar na Chapada, eu, Colecionador e Piauí, um amigo nosso. Durante o dia, saímos para andar, tomar banho de cachoeira, etc. Quando voltamos, tinham nove ligações de Lailiane no celular de Colecionador, cinco, no meu, e mais três, no de Piauí. Ficamos preocupados, achando que havia acontecido alguma coisa, e, pelo número de ligações, devia ser algo grave. Quando ele ligou de volta para a irmã e perguntou por que ela tinha ligado tantas vezes, ela gritou do outro lado: "Você levou todos os meus cremes da Lancôme!".

"Cremesss... Foi um só, e isso eu não nego. Eu uso hidratante facial. Na Chapada, a gente toma sol o dia inteiro, não custa passar um creme, eu disse um creme apenas, na cara, para ela não ficar ressecada. Eu me cuido, não sou um maltrapilho como você", rebateu Colecionador, apresentando a sua versão dos fatos.

Depois, ameaçou: "Eu vou ligar para Lailaninha, para ela contar direito o que aconteceu no dia que você quis atacá-la. As meninas baianas aqui vão conhecer quem você é. E ela [ele se referia a mim] vai escrever no blog".

Joca não se intimidou com a ameaça: "Pergunte a ela se a gente não namorou, se ela não já me beijou".

Eu fui a primeira a botar pilha. Colecionador pegou o celular, ligou para a irmã e ativou o viva voz, sob os olhares atentos e ouvidos a postos dos presentes na mesa. Chamou, chamou e caiu na caixa. A cada tentativa frustrada, Colecionador dizia: "Ou ela está no banho ou está madeirando". Após a terceira tentativa, ele passou a não considerar a opção do banho: "Tá madeirando com aquele namorado dela, o Lombardi".

Ele nem se lembrava como era o nome do cunhado, o chamava de Lombardi, pelo fato de que ele nunca vê o rapaz. "Eu sei que ele existe, mas ele não vai lá em casa", disse Colecionador.

Joca, então, teve a idéia de ligar para Piauí, para confirmar a versão dele sobre a história dos cremes da Lancôme. Piauí sustentou a mesma versão do episódio (todos nós ouvimos a conversa no viva voz), mas Colecionador não se deu por vencido: "Eu nunca neguei. Só disse que foi UM creme, e não vários. Agora, quero ver o que Lailaninha vai falar quando parar de madeirar".

A conversa com Lailaninha, que também se tornou de domínio coletivo por meio do viva voz, não foi exatamente como Colecionador esperava, pois ela se deu conta de que aquele papo fora de hora tinha algo de estranho: "Olha só a minha situação. Você quer saber o que aconteceu, naquele dia, no quarto da mamãe? Ah, ele ficou enchendo meu saco".

Depois dessa última declaração da irmã, Colecionador se despediu de Lailiane, fechou os olhos e arqueou as sombrancelhas com um ar triunfante. Desta vez, quem não se convenceu foi Joca, que fez questão de deixar uma interrogação pairando sobre a mesa: "Mas ele não perguntou a Lailiane se ela namorou ou não comigo. Ela já me beijou, isso é fato".

Não me lembro exatamente como a história veio à tona. Eu tenho a vaga impressão de que Colecionador começou a falar da mãe, a partir do caso da irmã, e aí, conversa vai, conversa vem, mencionou que a mãe, uma vez, quis jogar fora a coleção de calcinhas, que ele guardava no armário dele.

Nem precisei pedir, a mesa imediatamente exigiu, quase em uníssono, que ele explicasse direito aquela história. Ele repetiu o que já tinha dito, com outras palavras, e eu tomei a frente da entrevista, que aqui reproduzo, em formato de pergunta e resposta. As perguntas (P) foram minhas ou dos demais presentes, e as respostas (R) foram de Colecionador:

P: Quer dizer que você tem uma coleção de calcinhas, e sua mãe tem conhecimento disso.

R: Sim. Ela quis jogar fora, mas eu não deixei. Ela estava arrumando meu armário e encontrou o saco.

P: As calcinhas ficam num saco?

R: Num saco de pano. E são todas usadas.

P: Usadas? As calcinhas da sua coleção nunca foram lavadas?

R: Usada é uma coisa; suja é outra.

P: Mas por que isso? Não fedem?

R: Claro que não. De vez em quando, eu abro o saco e fico sentindo o cheirinho delas. São lindas. Cada uma tem o cheirinho da sua dona.

P: Você rouba as calcinhas?

R: Não, as garotas me dão.

P: São elas que oferecem, "Toma aqui, fique com a minha calcinha para você", é isso?

R: Quando não oferecem espontaneamente, eu peço, e elas acabam dando, para eu guardar de recordação. As calcinhas são lindas. Tem uma de filó que é uma coisinha. Sabe aquela marca Victoria Secret que as modelos usam nos desfiles? Na minha coleção, tem dessas.Todas usadas.

Cada doido com sua mania... E olhe que no dia seguinte a essa conversa no Pontão, escutei um outro rapaz, lá no churrasco na casa de madeira, dizendo que também tinha a sua própria coleção. Segundo ele, não possuía muitos exemplares, mas tinha esse hábito de colecionar calcinhas.

É certo que não posso generalizar, mas tenho a obrigação de ressaltar que não é um dado comum que, em menos de 24h, eu tenha conhecido dois candangos que confessaram em público ser colecionadores de calcinhas.

Para encerrar esse longo relato sobre os dias que passei em Brasília e sobre essas figuras inusitadas que lá conheci, uma última informação, estilo furo de reportagem de revista de fofoca: na segunda-feira, na véspera da nossa viagem de volta a Salvador, Colecionador conseguiu realizar o sonho de beijar Linda River. A partir de então, em seu Plano de Metas, ele elegeu como meta-síntese: conquistar o coração e a calcinha da amada. E o fez sob a seguinte promessa: "Se tal meta for cumprida, eu queimarei toda a minha coleção de calcinhas".

22 de junho de 2008

"Acende a fogueira do meu coração"


"Olha pro céu, meu amor
Vê como ele está lindo
Olha praquele balão multicor
Como no céu vai sumindo
Foi numa noite, igual a esta
Que tu me deste o teu coração
O céu estava, assim em festa
Pois era noite de São João
Havia balões no ar
Xote, baião no salão
E no terreiro
O teu olhar, que incendiou
Meu coração"


A foto foi tirada, em Cachoeira, no São João de 1996. Sou fã de Luiz Gonzaga, e "Olha pro céu" é, para mim, a melhor música de São João de todos os tempos. No vídeo, estão reunidos os reis da sanfona, sob o comando do Rei do Baião.

Estrelas no céu, corações incendiados e muito forró, for all.

Viva São João, minha gente!

20 de junho de 2008

Recordações da Facom

Ontem, assisti à entrevista de Wagner Moura, no Jô. Ele protagonizará "Hamlet" e foi ao programa divulgar a peça. Além de interpretar o Príncipe da Dinamarca, Wagner também é produtor da montagem para o teatro.

Wagner estava acompanhado da esposa e fotógrafa Sandra Delgado, que, da platéia, filmava a entrevista e era obrigada a ficar na sua e engolir um possível ciúme (não da mesma proporção do que tinha Otelo, o mouro de Veneza) diante da mulherada aos gritos e assobios provocados pelo marido dela.

Wagner e Sandra foram meus contemporâneos no curso de Jornalismo da Faculdade de Comunicação da Ufba (Facom). Wagner foi meu colega de sala, entramos no mesmo ano, mas ele se formou um tempo depois, justamente por conta dos compromissos com o teatro. Na época de faculdade, muito antes da fama, fui, algumas vezes, compor a pequena platéia que assistia às peças dele, encenadas em salas igualmente pequenas, na Escola de Teatro da Ufba. Nunca imaginaria que ele fosse se tornar uma celebridade como o é hoje, mas era fácil perceber que era um ator promissor, com um enorme potencial. E fico extremamente feliz por Wagner ter tido a oportunidade de demonstrar seu talento, para o Brasil, e para o mundo, e ser motivo de orgulho não só para aqueles que fizeram parte da turma de 94.1 da Facom.

***


(Nessa fotografia, tive meu instante de Bebel, ao lado daquele que interpretou Olavo, em Paraíso Tropical. Essa galera era muito gente boa. Além de Wagner, na foto, estão: Mateus e Leco, à frente; ao meu lado, da esquerda para direita, Daniela, uma prima de Ana Rosa ou de Livonny - não me lembro do nome dela nem de quem era prima -, Livonny, Antônio Jorge, Emanuel e Ana Rosa. Era uma festa brega. Acho que aconteceu no primeiro semestre de 1995)

***

Sandra Delgado entrou um semestre depois da nossa turma, e lembro que, desde o início do curso, muito antes de namorar com Wagner, ela já era uma promessa na área de fotografia e uma das pupilas queridas do professor Mamede, que ministrava essa disciplina, no segundo semestre.

Eu sempre gostei muito mais da área de texto e de pesquisa científica do que da parte de imagem, mas também tive um flerte com a fotografia, quando cursei, na mesma turma de Wagner, a disciplina de Mamede, que era optativa. Fiquei tão entusiasmada que comprava os químicos e o papel fotográfico, e passava as tardes no laboratório de fotografia, inclusive nas férias. A única coisa que não acertava fazer era colocar o filme na bobina, no breu total (nessa parte do processo, até a luz vermelha é apagada), pois não tinha habilidade manual e coordenação motora para isso. Achava incrível (parecia realmente efeito de mágica) ver a imagem se formando ao mergulhar o papel na bacia com ácido acético (esta etapa é chamada de banho interruptor. Em seguida vem o banho fixador, depois a lavagem em água corrente e, finalmente, o banho pré-secagem, com o Photofloo). Por isso, quando surgiu a fotografia digital, resisti um pouco a adotá-la, justamente pela perda desse desvelamento da imagem que fazia parte do processo de revelação da fotografia analógica e uma certa redução (uma vez que não há mais a espera, pois a imagem pode ser vista imediatamente, após ser captada, e os detalhes podem ser examinados por meio do zoom) do que podemos chamar de "efeito Blow Up", parafraseando um texto de Arlindo Machado, que fazia parte da bibliografia básica da disciplina de introdução à fotografia.

***
Arlindo Machado, no livro "A ilusão especular", faz a seguinte referência ao filme de Antonioni:

"Levando a sério a anedota de Blow up, o fotógrafo protagonista Thomas, num relance de sua trajetória frenética e vazia pela swinging London dos anos 60, descobre por acaso entre as fotos de um par romântico a imagem de um cadáver misteriosamente inserido no cenário idílico e revelado pelas ampliações fotográficas. O filme de Michelangelo Antonioni, em linhas gerais, é o relato dessa descoberta espantosa, como se uma realidade insuspeitada pelos olhos negligentes do protagonista fosse de repente resgatada pela câmera, no limite da própria credibilidade do fotógrafo. À medida que Thomas ia ampliando cada vez mais seus negativos, toda uma dimensão invisível do cotidiano se impunha de forma surpreendente, revelando por detrás das formas familiares do mundo uma outra realidade que só a intervenção do aparato fotográfico pôde fazer aflorar".

***
Mamede foi meu primeiro ídolo na faculdade (depois também fui fã de Elias - com este, a relação era de admiração e ódio, porque ele era bastante irônico, beirando o arrogante - e Monclar - não só por sua erudição, mas por ter aguçado minha percepção estética. Fora isso, o vi, uma vez, numa apresentação, tocando sax, e nunca me esquecerei do arranjo através do qual pude constatar o quanto é bonita a música "Dindi", de Tom Jobim). Não cheguei a fazer parte do grupo que participava das expedições fotográficas e de outros trabalhos extra-classe (como foi o caso de Sandra), mas ele me chamava de "the little best" (a ficha demorou a cair, ou seja, não entendi que Mamede estava me chamando de "a melhorzinha", quando ele se referiu a mim, dessa forma, pela primeira vez) por causa de minhas notas nas provas teóricas sobre textos de Dubois, Arlindo Machado, Roland Barthes, Faiga Ostrower e companhia.

Por falar em Dubois, me recordo agora de um seminário que apresentei sobre um livro dele, intitulado "O ato fotográfico", e que passei a chamar de "O ato pornográfico", por causa do seguinte trecho, que, na verdade, é uma citação de Roland Barthes:

"Para mim, o órgão do fotógrafo não é o olho (ele me aterroriza), é o dedo: o que está ligado ao disparador da objetiva, ao deslizar o metálico das placas... Adoro esses ruídos (e esse gesto) de maneira quase voluptuosa. [...] No temor do momento inelutável em que o indicador recurvado e rijo vai se apoiar no disparador (...), na brutalidade do golpe de polegar que faz o filme progredir de chapa em chapa, o que é bem sentido pela falange (...), acorrentando desesperadamente foto após foto, como nessa corrida sem cessar retida que faz com que, logo após ter tido prazer no amor, só se pense em voltar àquilo, já tenso com relação ao novo momento em que a plena carga mais uma vez estará em jogo..."

Obviamente, não tinha o talendo cênico de Wagner Moura, mas, durante o seminário, fiz questão de ler a citação de Barthes feita no texto de Dubois, com uma entonação caricaturalmente sensual, para brincar com o erotismo presente no trecho lido. Também não pude deixar de fazer referência ao novo título que demos ao texto, contrariando minhas colegas de equipe, que tinham me proíbido de fazê-lo. Poderia até perder as amigas e alguns pontos da nota, mas jamais perderia a piada.

Mamede também gostava das minhas fotografias, tanto que na exposição ao final da disciplina, das dez fotos exibidas (e não falo isso para me exibir), cinco ou seis foram minhas. E nas minhas incursões ao laboratório no período de férias, ampliei quatro dessas fotos, para guardar de lembrança. Entre minhas recordações desse período da faculdade, o seguinte fato também ficou gravado na memória: foi Wagner Moura, não sei se a idéia foi dele ou da equipe dele, quem defendeu que a exposição deveria ter como tema "Eu não sou cachorro não". Antes, ele e seus amigos também haviam apresentado "Meu mundo caiu", como sugestão. Mas, em vez de fotografarmos fracassados, humilhados, vítimas de dores de corno e afins (como sugeriam o tema que foi vetado e a música de Valdick Soriano, que inspirou a sugestão acatada. Não sei o que motivou a referência ao hit brega do cantor nem se algum desses meus colegas, ou talvez o próprio Wagner, estava passando por esse tipo de situação) ficou acertado que deveríamos fotografar cachorros de verdade, e não no sentido metafórico, pois isso seria mais exeqüível, já que teríamos de captar as imagens, nas redondezas da faculdade e durante o horário das aulas.



Mesmo com esse enfoque, ter de sair pela rua atrás de cachorros foi mais difícil do que esperávamos. Fora isso, ainda havia a responsabilidade de andar, pelos becos e vielas, do Canela e do Campo Grande, com as câmeras fotográficas da faculdade. Como essas não eram muitas, Mamede nos emprestava também a dele, uma super Nikon F-não sei quanto, aumentando ainda mais o nosso temor. Quando avistávamos um cachorro, tínhamos de ser agéis, para ajustar foco, velocidade e abertura do diafragma (eu fazia tudo meio na doida e intuitivamente; não sei como dava certo), e ao mesmo tempo cuidadosas (o adjetivo está no feminino, pois, na minha equipe, só havia mulheres, já que a maioria dos homens, que eram minoria na sala, faziam parte da equipe de Wagner) para não assustar (ou deixar com raiva) o animal.

Houve um dia em que resolvemos ir de carro a uma clínica veterinária que ficava no Vale do Canela, pois já tínhamos andado mais de uma hora sem encontrar nenhum cachorro. Uma foto que tirei de um Lulu da Pomerânia preso numa gaiola (será que é assim que chama? Jaula também não deve ser) foi incluída na exposição (Mamede a escolheu, porque consegui o efeito de desfocar a grade, em primeiro plano, e focar apenas o pobre cachorro atrás dela).

Aqueles que estavam na clínica naquele dia foram os únicos cachorros de pedigree que fotografamos, os demais eram vira-latas, com exceção de um coker spaniel que fotografei, na rua do Marista. Essa fotografia era uma das minhas preferidas (enquadrei o rosto do cachorro, que era preto, sobreposto a um pedaço da calça branca de sua dona. A calça era de um tecido mais fino e devia ter sido recém-passada, pois estava com o vinco bem definido), mas não entrou na exposição, pois o negativo estava arranhado.

Em outra ocasião, ouvimos latidos que vinham de dentro de uma casa que parecia estar abandonada. Invadimos a casa, que estava com o portão aberto, e, para nossa surpresa, encontramos uns filhotinhos de vira-lata lindos. Aí foi uma festa. Em meio a nossa euforia, fomos surpreendidas por uma mulher, mas esta, em vez de nos repreender pela invasão de propriedade, nos mostrou outros deles que estavam junto com a mãe (para nossa sorte, a cadela estava presa), numa garagem velha.

(Esse está com uma carinha tão tristinha, parece até que estava ouvindo a música de Valdick Soriano)


(Chega dar dó essa expressão très désolée do bichinho. Vai ver que é porque se encontrava longe da mãe, que estava presa na garagem, ou tímido, diante da nossa presença e sob o olhar das câmeras fotográficas. O que está ao fundo, meio desfocado, em segundo plano, apesar de sério, não está tão abatido como o irmão.)


(Vixe, mamãe!!! Essa foto, na moral, está tão gutchi - naquele tempo, eu tinha a mania ridícula de usar esse termo, parecendo uma retardada - que podia ser capa de caderno da Tilibra. Para mim, o ponto alto da fotografia é o focinho da cadela-mãe, no canto superior direito. Exemplificando o "efeito Blow Up", só fui notá-lo após a revelação e ampliação da foto)

Mas a minha melhor foto não foi tão espontânea quanto esta última. Tive de usar de um artifício, para obter a imagem desejada. Na época, eu não tinha carro e sempre levava, na bolsa, uma sombrinha marrom, com flores rosas e azuis, dessas made in Taiwan, que são vendidas em camelô.

A cadela-modelo tomava seu saudável sol matinal de 10h, perto do Caboclo, no Campo Grande. Nada nem ninguém a abalava em sua pose de vira-lata. Prova de que altivez não tem nada a ver com pedigree. Aqueles que vivem humilhados e desprezados, por amar sendo enganados, deveriam mirar-se na postura dela. Muito mais nobre do quer ficar se lamentando e cantando por aí: "Eu não sou cachorro não".

19 de maio de 2008

Coisa boa é amar

É meia noite, o exato momento em que se inicia o dia 19 de maio e começo a escrever esse texto. Devia me preparar para dormir, afinal sairei de casa daqui a sete horas, para o trabalho; ou então aproveitar que estou sem sono, para adiantar minhas leituras do Doutorado, pois foi para isso que bebi uma xícara de café, no jantar, com a intenção de me manter acordada.

Mas não estou concentrada para ler o livro de Milton Hatoum, o atual queridinho da turma de Letras. O domingo chuvoso, que já terminou, me deixou reflexiva, e por isso resolvi escrever um texto com cara de blog. Por texto com cara de blog, entende-se: um relato em tom confessional, próximo do gênero “diário íntimo”.

Isso talvez se deva ao fato de ter ficado grande parte do dia sozinha ― meus pais passaram o dia em Itacimirim ― e ao DVD de Frank Sinatra a que assisti enquanto comia o macarrão com molho de atum que fiz para mim. Não tenho vocação para cozinha (e isso não tem nada a ver com ranço feminista; admiro profundamente aquelas e aqueles que a têm), mas me recuso a comer, no almoço, produtos industrializados. Então, quando não tenho alguém que o faça por e para mim, prefiro preparar meus pratos.

Meu problema na cozinha é falta de timing, há sempre um momento em que fico baratinada, com a água do macarrão fervendo, as cebolas já ficando mais do que douradas, a lata de atum por abrir e os tomates a cortar. Aliás, cortar é o verbo que denota toda a minha impaciência e pouca habilidade na cozinha. Chega um instante em que me dá agonia cortar os pedacinhos de qualquer coisa, de forma que eles fiquem iguais e esteticamente adequados. Para mim, essa é a pior parte. Para compensar a ausência de um tempero especial, meu truque é usar pimenta (branca, do reino, calabresa ou um mix de todas elas). Eu gosto dos pratos que faço, mas jamais os prepararia para servir num jantar para convidados. O sabor da comida de minha autoria é semelhante à de restaurante a quilo: é da qualidade de comível, mas carente de um tempero diferenciado.

Boa parte das vezes em que cozinho para a minha pessoa, gosto de assistir a um DVD de Frank Sinatra, que é de meu pai. “My way” é a terceira música do DVD e, normalmente, coincide com os últimos momentos da minha refeição: “and now the end is near, and so I face the final curtain...”. No meu caso, a garfada final, geralmente, se dá ao som do refrão: “and more, much more than this, I did it my way”. E assim termino o almoço com a sensação de que foi melhor enfrentar as panelas do que comer uma lasanha da Sadia.

Sob essa atmosfera introspectiva provocada pela música de Sinatra e pela chuva que caía, decidi fazer a digestão na frente do computador, ouvindo outras músicas de que gosto. Entrei no Youtube e baixei um vídeo de Gal e Elis Regina, novinhas, cantando juntas “Estrada do Sol”, de Tom Jobim. Depois procurei Bethânia interpretando “Outra Vez”, de Roberto Carlos, e Marvin Gaye cantando “Sexual Healing”. Aí me lembrei da música “A natureza das coisas”, cuja letra traduz aquilo que estabeleci como lema em minha vida: “se avexe não, amanhã pode acontecer tudo, inclusive nada”.

A primeira vez que ouvi essa música foi num filme brasileiro chamado “A máquina”. Junto com ela, também me veio a recordação de outra cena do filme, que, na ocasião, havia me chamado a atenção: um clipe dos “The Sconhecidos” cantando uma versão, digamos assim, bem cool, de “Dia Branco”. Até então, nunca tinha reparado na beleza da letra, pois sempre achei uma chatice ouvir a versão original de Geraldo Azevedo: “Se branco ele for / E esse canto / Esse tanto / Esse tão grande amor / Grande amor... / Se você quiser e vier / Pro que der e vier / Comigo...”.

O clipe, que no filme é anunciado pelo personagem interpretado por Paulo Autran, foi uma das cenas que mais me tocaram quando assisti ao DVD, mais de um ano atrás, numa noite de sábado, em que pude desfrutar daqueles bons momentos em que a solidão é bem vinda. E talvez essa passagem tenha me tocado esse tanto, não só pela música conhecida que me foi revelada de uma outra maneira, mas justamente devido à seqüência que a sucede, na qual Antônio, o protagonista do filme, declara para Carina, a mocinha, o amor que sente por ela. O texto é primoroso: “esse negócio que eu sinto, esse negócio de doido, que eu não encontro nome em nenhuma das palavras existentes e que não tem som nem letra escrita que explique como ele é exagerado”.

Carina pergunta onde ele leu aquilo, e Antônio responde: “eu nem li, nem decorei, nem sei repetir de novo, porque sentimento sentido de verdade não carece ser documentado em papel ou romance nem filme, pois não é da conta de ninguém, a não ser da pessoa que sente, além da outra responsável pelo afeto causado”.



A professora da disciplina "Representação literária" costuma falar que o que motiva a criação de um escritor é uma falta, a sensação de incompletude. E foi por esse sentimento que estou aqui escrevendo esse texto, embora ele não tenha grandes pretensões literárias. Ontem, por coincidência, um amigo justificava todas as insanidades que dizia, utilizando o seguinte pretexto: “me desculpem, mas é preciso botar para fora, exteriorizar. Se não, dá câncer”.

Seguindo esse sábio procedimento, venho aqui falar da carência de um grande amor pro que der e vier. É isso o que eu e minhas amigas solteiras tanto desejamos: não precisamos de um homem provedor, não queremos uma festa de casamento para dar uma satisfação à sociedade, não ansiamos pelo casamento em si, mas sentimos muita falta de alguém que nos faça experimentar "esse negócio de doido" que Antônio diz ter por Carina.

Se me arvoro à condição de porta-voz é porque sei que posso falar por mim e por elas. Somos mulheres felizes e nos sentimos realizadas em quase todos os aspectos de nossas existências, mas há essa incompletude que vem acompanhada do constante desejo de tentar preenchê-la com um amor.

E o amor que buscamos não é o da ficção, que, nas palavras de Antônio, é um “tal de amor que personagem finge, amor dessa qualidade que tem paciência até para esperar, entre um anúncio e outro, o voltamos a apresentar, para só então concluir o que tinha fingido que tinha começado”.

E o objeto desse tão sonhado amor está longe de ser um príncipe encantado; pode até ter “cara de leso”, como a de Antônio é classificada por Carina. Esse tal amor pode até prescindir de lindas palavras, como as que Antônio tão bem falou para ela, desde que seja “um sentimento sentido de verdade” tanto por nós como por aquele que há de ser o “responsável pelo afeto causado”.

Já é tarde, e preciso dormir, pelo menos, umas poucas horas. E o farei com a esperança de que amanhã (no caso, hoje) poderá acontecer tudo, inclusive nada. Coisa boa é namorar!


1 de maio de 2008

Por Cris, em Cris, com Cris. Viva Santo Exxxxxpeditôôô!!!!

Dia 19 de abril é Dia do Índio, Dia do Exército, aniversário de minha amiga Rebeca Muller e Dia de Santo Expedito, o santo das causas urgentes. Esse ano, nessa data, eu estava no Rio de Janeiro e fui com Marília, minha irmã, para uma missa, seguida de procissão, em homenagem ao santo, numa paróquia em Niterói. Lá, a festa do dia 19 de abril é tradicional, e a devoção a Santo Expedito é muito forte. Durante a missa, ouvi uma senhora dizer que aquela igreja em Niterói foi a primeira erguida, para louvá-lo, no Brasil. Se é verdade, só Deus mesmo para saber.

Mas você, caro leitor, assim como muitos de nosso convívio, deve estar se perguntando que diabos, com perdão da expressão herege, eu e Marília, acompanhadas de Leonardo (meu cunhado e marido dela), fomos fazer num evento como aquele. No meu caso especificamente, a questão parece ainda mais intrigante : o que leva uma pessoa que saiu de Salvador para passar um fim de semana prolongado (21 de abril, feriado de Tiradentes, caiu numa segunda-feira) no Rio de Janeiro, em pleno sábado de sol, cruzar a ponte Rio-Niterói, deixando para trás os agitos da Cidade Maravilhosa, e se meter no meio de uma comunidade periférica para rezar para um santo?

1- Por devoção, propriamente, não foi. Não tenho o perfil de beata nem de religiosa. Nem sei rezar o Credo; só domino as orações básicas: Pai Nosso e Ave Maria. E se não tiver um papelzinho com o roteiro para acompanhar, mal sei a ordem das intervenções que devem ser feitas ao longo da missa. Exemplo: o padre fala "Que o Senhor esteja convosco", e os fiéis respondem "Ele está no meio de nós". Sigo o fluxo e me guio pela intuição. Quando não sei o que falar, fico calada ou mexo os lábios fingindo que estou dizendo alguma coisa.

2- Por desespero, também não foi. Até tenho umas causas para serem resolvidas com urgência, mas não foram elas que me levaram a Niterói.

Sim, por que motivo então?

Resposta parcial: O mesmo que me faz, em Salvador, todo ano, desde 2005, sair do bairro da Pituba e ir para uma igreja na Estrada da Liberdade, no outro extremo da cidade.

Calma, não se impaciente, sei que isso ainda não responde a questão. A explicação é simples, e espero que seja convincente.

Não tenho muita afinidade com aqueles que insistem num discurso saudosista, lamentando a perda de algo que era bom no passado e que não existe mais. Para mim, vale o clichê, presente nos discursos pós-modernos, de que "a mudança é a única constante nos dias de hoje". Já que mencionei esta palavra, vale dizer que a idéia de "pra hoje" é o lema de Santo Expedito, como conta a matéria de capa sobre os "santos da crise", publicada na Revista Época, em 17 de maio de 1999. A reportagem começa assim:


"Ele era um guerreiro de elite do Império Romano. Comandava a XII Legião, uma tropa estratégica cuja missão era defender a província da Armênia das constantes invasões asiáticas. Fazia parte da categoria de soldados expeditus, assim conhecidos por usar armas leves e não levar bagagens para locomover-se com rapidez. Talvez por isso o comandante tenha passado para a História com o nome de Expedito. Era o fim do século 3, sob o império de Diocleciano, um perseguidor de cristãos. Mas Expedito e sua tropa seguiam a doutrina de Jesus Cristo, e por isso ele teve selada sua sentença de morte. Foi flagelado até a última gota de sangue e, em seguida, degolado.

Reza a lenda que, no momento de sua conversão ao cristianismo, apareceu um corvo que crocitou a palavra 'crás' (cras, em latim, significa amanhã). O soldado esmagou o pássaro esbravejando: 'Hodie' (hoje). O recado dessa imagem: não se deve deixar para amanhã o que se pode fazer hoje. Esse é o lema de Santo Expedito, o santo da hora. [...] a religiosidade popular o transformou num ícone graças a sua fama de solucionar problemas com presteza. Como se esmagasse um corvo por dia" (ÉPOCA, Edição 52, 1999).

Isso garanto que você não sabia: Santo Expedito não era do Bope, mas fazia parte da Tropa de Elite. Mas antes de me perder nessa digressão, eu estava comentando que acho meio nada a ver esse discurso sobre a perda de algo que era bom e se acabou. Exemplo: "Antigamente, os meninos brincavam na rua de 'amarelinha', gude e 'chicotinho queimado'; hoje as crianças só querem saber de videogame. As pessoas se reuniam na praça ou em volta de uma fogueira para jogar conversa fora e contar 'causos'; atualmente, ficam isoladas em suas casas assistindo ao Big Brother". Na moral, convenhamos que esse papo não convence! É a mesma coisa que querer que um jovem de hoje veja alguma graça nos filmes em preto e branco de Jerry Lewis ou de "O Gordo e o Magro" (se bem que eu ainda dou risada dos Trapalhões) ou achar o máximo gravar os últimos hits das paradas de rádio num toca-fita enquanto se pode fazer um download de músicas no E-mule para ouvir no Ipod.

No entanto, tenho de admitir que é a carência de um certo espírito comunitário, atualmente raro diante do individualismo moderno, que faz com que eu considere um programa interessante ir a uma missa em saudação a Santo Expedito e participar de uma procissão. Pude vivenciar essa sensação de uma experiência comunitária na primeira vez em que fui com minha irmã, no dia 19 de abril de 2005, à igreja da comunidade de Santo Expedito no bairro da Liberdade.

Marília se tornou devota do santo em função dos trabalhos da disciplina "Atelier", durante o curso de Arquitetura. O dono da cantina da faculdade, sabendo do desespero dos estudantes em final de semestre, colocava bem à mostra no balcão uma pilha de santinhos com a imagem e a oração a Santo Expedito, ao lado de um pacote de Arrebite (energético à base de guaraná em pó). Então, toda vez que o Autocad (programa de computador que os arquitetos usam para desenhar) travava, e Marília não fazia idéia de quando tinha salvo o arquivo pela última vez, o jeito era apelar para a intervenção urgente do santo. E o mesmo gesto se repetia inúmeras vezes: no momento de produzir a maquete; depois de varar a madrugada pelo segundo ou terceiro dia consecutivo; ao fazer a plotagem das plantas, horas antes de encerrar o prazo de entrega, etc., etc.

Marília, com o perfeccionismo que lhe é peculiar, levou um ano para concluir o TFG (trabalho final de graduação). Dá para imaginar o quanto o pobre do santo foi requisitado nesse período. No dia da apresentação do trabalho para a banca, ele estava presente, personificado numa imagem de 6 cm de altura, bem ao lado do computador e do datashow, para que não houvesse nenhum problema com o Power Point. Minha irmã foi aprovada com nota 10 e com louvor. Diante dessa graça, o santo merecia uma louvação especial. Marília descobriu que havia uma paróquia de Santo Expedito na Liberdade e resolveu ir até lá no dia 19 de abril, para agredecer ao seu santo protetor.

Como a Liberdade é um bairro mais periférico, e Marília não conhecia o caminho, pediu que eu fosse com ela. Como sou baiana de todos os santos, encantos e axé, topei na hora, porque minha devoção é como coração de mãe e elevador para quem usa Rexona, sempre cabe mais um. Não é à toa que um dia fui tomar passe num centro espírita de origem cabocla, e, no momento do passe, quando eu estava bem concentrada, o caboclo deu um grito e perguntou se eu tinha "as intuição". Falei que não, e ele disse que todas as respostas estavam dentro de mim. Achei aquilo profundo. Mas do que gostei mesmo foi o que o espírito falou na seqüência: "Echa minina, echa minina tem bom coração, por icho tem boa proteção".

Marília consultou o mapa de ruas de Salvador, anotou todas as coordenadas num papel, saímos de casa com uma hora de antecedência e chegamos na paróquia de Santo Expedito sem grandes contratempos (erramos o caminho apenas uma vez, já no final do trajeto). A igreja era pequenininha e estava lotada. Nós éramos as únicas que não estavam vestidas de vermelho. Havia umas camisas à venda, e resolvemos comprá-las para ficarmos mais integradas. As organizadoras da festa ficaram bastante contentes com a nossa presença; toda hora, uma vinha e nos dizia: "que bom que vocês vieram, depois da missa serviremos um mingau ali no largo, e a noite haverá procissão".

No meu imaginário, a figura de beata correspondia à representação de Perpétua em "Tieta do Agreste" ou então à das que, lideradas por Dona Pombinha Abelha, protestavam contra a existência da boate em que a personagem de Cláudia Raia trabalhava em "Roque Santeiro". Mas as beatas da igreja da Liberdade eram muito simpáticas, alegres e cheias de animação: cantavam todas as músicas e se empolgavam nas coreografias.

Até então, eu nunca tinha assistido a uma missa depois da Renovação Carismática e da moda lançada por Marcelo Rossi. Mas o padre Marcelo é uma mosca morta se comparado ao que rezou a missa no dia de Santo Expedito. Esse, sim, era um legítimo representante do swing baiano. Ao lado do altar, havia uma banda, composta de baixo, guitarra, teclado e bateria. E quem comandava o vocal e puxava o coro dos fiéis era o próprio padre. O pároco tinha presença de palco, era um verdadeiro showman. Boa parte das músicas tinha ritmo de reggae, e ele, ao cantá-las, balançava o corpo e a cabeça com fazem Pierre Onassis e Margareth Menezes. "Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo" ganhou um arranjo com batida de baião.

Mas o que sacudia mesmo a galera era o hino a Santo Expedito. "Quero ver todo mundo agitando esses raminhos, Viva Santo Expedito!!!", gritava o padre. Os raminhos eram folhas de EVA (não é Eva, mulher de Adão; trata-se de é-vê-a, etil vinil acetato, um material emborrachado), como a que a imagem de Santo Expedito carrega na mão, e foram distribuídos no início da missa. Para mim e Marília, eles tiveram uma outra finalidade, quando as câmeras da TV Aratu começaram a captar imagens para a reportagem que iria ao ar no jornal do meio dia.

Encerrada a missa, antes de irmos embora, as beatas organizadoras perguntaram se a gente poderia colocar nossos nomes num abaixo-assinado reivindicando a permanência do padre à frente da paróquia. O motivo nós imaginávamos, e, se a ameaça de tirá-lo de lá se devia ao que estavámos pensando, assinaríamos de bom grado. "Claro que sim, o padre é ótimo, a missa foi muito legal, adoramos", dissemos nos solidarizando com a causa delas.

Em 2006, Marília já estava casada e morando no Rio de Janeiro. Ela foi com Leo para uma missa no forte do Leme, organizada pelo pessoal do Exército. Eles eram os únicos jovens, e o padre ficou felicíssimo com a presença da "juventude" privilegiando o evento. E eu fui novamente à igreja da Liberdade, dessa vez, sozinha. Fui vestida com a camisa comprada no ano anterior, e as organizadoras me reconheceram, e fizeram questão de ir me cumprimentar e me dar as boas-vindas. Eu me lembrava de várias caras que estavam lá, da outra vez. Achei o padre bem mais comedido, embora a missa continuasse animada ao som da banda. Pensei em duas hipóteses para a mudança de atitude do padre-cantor: ou aquela tinha sido uma condição para a permanência dele na paróquia, ou, diante do episódio da missa espalhafatosa de Padre Pinto (vale a pena ver no youtube a reportagem que foi exibida no Jornal da Globo) ― que, na época, era um fato ainda recente ―, ele achou melhor se conter, para evitar qualquer tipo de comparação.

Em 2007, para minha surpresa, ao chegar no Largo do Guarani, encontrei a igreja fechada. Pensei logo: "não conseguiram manter o padre na paróquia, e, em função disso, não haverá missa". Conversei com algumas pessoas que estavam no ponto de ônibus e fiquei sabendo que a missa aconteceria numa casa localizada numa rua próxima dali. Fui até lá e não tive dificuldade de encontrá-la, pois o espaço onde a missa estava sendo realizada era tão pequeno que boa parte dos fiéis tinha de ficar do lado de fora. Até hoje não sei o que provocou a mudança de lugar, mas se percebia, pelo discurso, em tom de luta vencida, que aquela casa e a celebração da missa de Santo Expedito ali eram uma conquista do padre e da comunidade de fiéis. Num cômodo contíguo à sala onde ficava o altar, estava a imagem de Santo Expedito. Quando a missa terminou, todos se dirigiram até lá, para fazer seus pedidos e agradecer as graças por ele concedidas.

Eu assisti à missa da calçada, olhando pela janela, mas fiz questão de enfrentar o calor e a aglomeração de pessoas, para ir conhecer a nova morada do santo. O quarto era minúsculo, uma luz azul iluminava o ambiente, e as paredes estavam forradas com um tecido prateado. Se fosse contextualizar toda a história que originou o pedido que fiz a Santo Expedito naquela ocasião, gastaria muitas linhas. O que não posso deixar de dizer aqui é que ele foi prontamente atendido, beneficiando várias pessoas da minha família. Viva Santo Expedito! Viva!

Eu já estava com vontade de ir passar o feriado de 21 de abril, com Marília, no Rio. Quando lembramos que seria uma oportunidade de irmos juntas para a missa do Dia de Santo Expedito, imediatamente comecei a pesquisar os preços de passagem aérea. Provavelmente com a interferência do santo, consegui uma promoção excelente.

Marília tinha ouvido falar que a comunidade de devotos de Santo Expedito em Niterói era bem expressiva. Descobriu também que havia uma missa organizada pelo Devoto de Santo Expedito, na Penha. Ele tem um site, com vídeos e músicas, e emite um certificado de "Devoto de Santo Expedito", enviado por correio, para aqueles que preencherem os dados e desejarem recebê-lo. Marília, é claro, solicitou imediatamente a emissão de seu certificado. O acesso ao lugar onde ocorreria a missa na Penha era meio complicado e um pouco barra pesada, portanto Leo achou melhor irmos mesmo para Niterói. Marília ligou para lá para saber os horários da missa e da procissão, e para obter informações de como chegar ao local. A pessoa que atendeu a ligação disse que não seria possível estacionar perto da igreja, porque a festa atraía muita gente. Quanto aos horários, haveria missa durante o dia inteiro, e a procissão estava prevista para as 19h. Com o nome das ruas, tanto a da igreja como a outra onde deveriam deixar o carro, Marília e Leo ainda fizeram uma consulta no Google Earth, para não ter errada. Como os dois são bons de mapa e havia uma concentração de pessoas vestidas de vermelho no lugar, acharam, de primeira, a Rua 22 de novembro, que ficava próxima à igreja e por onde passaria a procissão.

Fomos a Niterói mais cedo, saímos de casa por volta de 11h da manhã, porque assim aproveitaríamos para visitar o teatro popular projetado por Niemeyer, o MAC, que também é projeto dele, e o Parque da Cidade, que fica no alto, tem uma vista maravilhosa e de onde são realizados vôos de parapente e asa delta. Mas naquele dia não havia vento, e ninguém estava voando.



Fizemos toda a programação conforme havíamos planejado e chegamos na igreja no horário da última missa, que começaria às 17h. A igreja ficava no topo de uma ladeira um tanto íngreme. De forma parecida ao que costuma acontecer nas imediações da Igreja do Bonfim, ao longo do caminho, o comércio de artigos religiosos comia no centro. Por toda ladeira, de cima a baixo, havia dezenas de barraquinhas, sendo que algumas delas vendiam comida e bebida. E eu e Marília nos rendemos ao assédio dos vendedores: compramos rosas vermelhas, medalhinhas e velas. Marília ainda comprou um maço de fitinhas idênticas às do Bonfim, só que com o nome de Santo Expedito. Acho legal comprar essas coisas, não só para entrar no clima, mas como iniciativa de distribuição de renda. O reino dos céus deve valorizar esse tipo de ação, mais pela contribuição à justiça social do que pela demonstração de fé.

Logo depois, tratamos de acender nossas velas diante da imagem do santo, num local específico para isso.


No momento, em que eu, no meio da rua, me preparava para tirar uma foto de Marília e Leo, em frente a uma barraca que vendia camisas, um carro veio subindo a ladeira, buzinando insistentemente, para que eu desse lugar para ele passar. Imediatamente, me afastei para o lado da rua e me surpreendi ao ver que o motorista do carro era o padre que rezaria a missa. Depois ficamos sabendo, durante o sermão, que ele veio, de carro, de São Paulo, especialmente para o evento, e havia acabado de chegar de viagem naquele instante em que passou por nós.

Com a chegada do padre, os sinos começaram a tocar indicando que a missa começaria logo em seguida.

A igreja estava lotada. Eu e Marília ficamos do lado de fora, bem posicionadas, em frente à porta lateral. Do nosso ângulo de visão, dava para ver o padre. Portanto, era bem melhor ficar ali, pois lá dentro não aguentaríamos o calor. Leo ficou mais afastado, pois podia a qualquer momento receber uma ligação do trabalho. Ao longo do dia, embora estivesse de folga, ele teve de resolver vários problemas por telefone. Aí eu digo e afirmo: Santo Expedito enviou para minha irmã um marido a sua imagem e semelhança. No que diz respeito ao aspecto físico, a semelhança era ainda maior, quando eles começaram a namorar: afinal, Leo tinha mais cabelo e era mais magrinho, como o santo. Quanto a atender as causas de Marília, meu cunhado, diversas vezes, desempenha fielmente o papel de intermediário dos desígnios de Expedito.

Gostei do estilo do padre: era jovem, assertivo em seu discurso, demonstrava preocupação social e vigorosamente incitava os fiéis a louvarem o santo das causas urgentes. "Viva Santo Exxxxpeditôôô!!!!!", repetia o tempo todo, com seu sotaque carioca. O ponto alto da missa, para mim, foi o momento em que ele se referiu à presteza do santo. "Meus amigos, a graça de Santo Expedito é para...", ele enunciava a frase incompleta, erguendo o braço e apontando o indicador na direção da multidão, para que os devotos respondessem numa só voz: "Hoje!". E eu mentalizava meus pedidos ao mesmo tempo em que engrossava o coro que gritava "Hoje!", a cada intervenção do padre.

A missa também tinha trilha sonora, banda ao vivo e coreografias, mas o padre de Niterói, embora também cantasse, era mais sério e tinha menos ginga do que o padre da paróquia da Liberdade. Mas numa música cujo refrão era "céus e terra passarão, só sua palavra não passará. Não, não passará... Não, não, não, passará", ele mandou ver na coreografia. Cada fragmento de frase correspondia a um movimento:

Céus = levantar braços e mãos para cima;

Terra = descer subitamente o braço flexionado movendo os cotovelos para trás;

Passarão = levantar os braços, com a plama da mão virada para trás, movimentando os dedos e flexionando o punho para trás, como o gesto feito pelos guardadores de carro quando dizem "venha, venha mais";

Só sua palavra não passará. Não, não, passará = balançar os antebraços de um lado para o outro (direita-esquerda, direita-esquerda, oito vezes) com a mão fechada e somente o indicador apontando para cima;

Não, não, não, passará = mesmo movimento anterior, marcando a pausa na passagem de um movimento para o outro, invertendo a direção (esquerda-direita, esquerda-direita, seis vezes) e aumentando a velocidade no "não, não, não", e diminuindo no "passará".

De música em música (o repertório era bem vasto, e cada letra repetia muitas vezes os mesmos versos, por isso eu e Marília conseguíamos facilmente decorar e acompanhar), sermão em sermão, vivas a Santo Expedito, Evangelho e tudo mais, a missa durou duas horas. Isso mesmo, duas horas!!! Nunca fui a uma missa tão demorada. Só para o padre benzer todo mundo, de dentro e de fora da igreja, foram, no mínimo, 30 minutos.

A uma certa altura, comecei a ter dor de cabeça e uma leve sensação de enjôo. Devia ser por causa do calor e pelo fato de eu não ter costume de ficar muito tempo sem beber água. Chegou então o momento da comunhão. Na época em que fiz aulas de catecismo para a primeira eucaristia, aprendi que só podia receber o corpo de Cristo quem confessasse e se arrependesse dos pecados, após ter o perdão de Deus, depois de cumprir a penitência estipulada pelo padre. Só me confessei uma única vez, um dia antes da primeira comunhão. Lembro que inventei umas coisas só para ter o que falar para o padre, pois não me lembrava de nada que eu fizesse que pudesse ser classificado como pecado. Disse que mentia, o que, na verdade, era a única mentira, pois não tinha esse hábito, pelo contrário, era a primeira a me entregar quando fazia algo de errado; falei que brigava muito com minha irmã, embora o considerasse uma coisa tão natural que não entendia como aquilo podia ser pecado; e comentei que, às vezes, tinha atitudes egoístas, o que também se explicava pela idade e pelo fato de ser a primogênita, com três anos e meio de diferença para a irmã caçula. Por aqueles pecadinhos, o padre mandou rezar três ave-marias e três pai-nossos, e eu achei um absurdo.

Eu até gostava das aulas de eucaristia, principalmente, pela socialização com os colegas. Alunos que na escola pertenciam a turmas diferentes assistiam juntos às aulas da catequese. E, ao final de cada aula, enquanto esperávamos os pais nos buscarem, fazíamos uma bagunça. Lembro de todo mundo, na entrada do lugar onde era dado o curso, cantando e batucando num carrinho de picolé da Kibon "Entrei de gaiato no navio", música dos Paralamas, que era sucesso na época. As músicas do Camisa de Vênus, "Eu não matei Joana D'arc" e "Sílvia Piranha", além de "Bichos Escrotos", dos Titãs, que ouvíamos e cantávamos no recreio do colégio, ao som de uma radiola vermelha, ali não faziam parte do repertório, por causa dos palavrões e por respeito a Jesus, Nosso Senhor. O mais importante é que eu absorvi os ensinamentos de Cristo, principalmente, o de amor ao próximo e o princípio do perdão. Não conheço direito nem ligo para os dogmas da Igreja, mas, como se percebe, tenho uma simpatia especial pelo ritual e pela experiência coletiva da celebração da missa.

Antes de iniciar o ritual da comunhão, o padre falou que os imperfeitos, entre os quais ele se incluía, poderiam e deveriam receber o corpo de Cristo, como forma de buscar o contínuo aperfeiçoamento. Diante dessa ressalva, eu e Marília interpretamos que estávamos aptas a comungar ainda que não tivéssemos confessado os nossos pecados. Como havia muita gente, o padre e os outros ministros de Deus se dividiram para distribuir as hóstias. Chegou a minha vez, e um dos ministros olhou para mim, com a hóstia na mão, estendeu-a em minha direção e falou "o corpo de Cristo", como se esperasse que eu dissesse algo. Eu não sabia o que dizer, balancei a cabeça num gesto que significava "pode me dar que eu aceito" e abri a boca para receber a hóstia. Na vez de Marília, ela disse "Amém", quando o padre lhe ofereceu "o corpo de Cristo", mas também não tinha certeza se era isso mesmo que devia dizer.

Pode até ter sido coincidência ou haver uma explicação científica para isso, mas o certo é que após receber "o corpo de Cristo" me senti muito melhor, a dor de cabeça e o enjôo passaram logo depois. Juro para você, se não fosse isso, não teria energia para, depois de duas horas de missa, aguentar mais de uma hora de procissão, descendo e subindo ladeira, e rezando o percurso inteiro.

Apesar da divisão de tarefas, a comunhão levou tanto ou mais tempo do que a benção; afinal, os ministros de Deus repetiam a mesma frase para cada fiel e aguardavam que este abrisse a boca, para só então colocar a hóstia lá dentro. Na benção, o padre usava um super pincel de pintar parede (observem que usei o termo pincel, para não se pensar que ele estava usando um rolo embebido de água benta) e um balde de água benta, ia passando rapidamente e molhando todo mundo.

Quando a missa terminou, o padre convocou os presentes a saírem da igreja, para dar início à procissão. À frente do cortejo, iam os sacristãos levando tochas e incenso; em seguida, vinham os que carregavam a imagem de Santo Expedito; atrás deles, a multidão de devotos, entre eles, eu, Marília e Leo. Eu e Marília, embora cansadas, acompanhávamos com fervor as rezas e as saudações a Santo Expedito.


Sobre a cabeça de Leo, como revelava sua expressão facial, pairava um balãozinho, como os das histórias em quadrinhos, imaginário, no qual se lia: “que porra estou fazendo aqui?”. Aí eu digo e afirmo: isso sim é demonstração de amor e lealdade. É a prova concreta do cumprimento do juramento feito no matrimônio: “na alegria e na tristeza, na saúde e na doença...”. Acrescente-se: “em show de Ivete Sangalo e na procissão de Santo Expedito...”. Amém!











Ao final do cortejo, vinham o padre e o carro de som ― um chevette velho e acabado―, por meio do qual ele fazia as pregações e incitava os fiéis a rezarem. Nunca rezei tanto em minha vida. A cada momento, as orações, sempre um Pai Nosso e uma Ave Maria, ou vice-versa, destinavam-se a um grupo específico: os jovens que precisavam se livrar das drogas, os desempregados, os doentes, os deprimidos, os idosos, as famílias etc.




O trajeto era o seguinte: a procissão saía da igreja, descia a Rua Lopes da Cunha, dobrava na Airosa Galvão, percorria a Rua 22 de novembro, que é enorme, e subia novamente a ladeira que descemos no início.

Antes do começo da subida da ladeira, já ao fim da procissão, o padre não tinha mais fôlego nem voz e passou o microfone para uma senhora. Nesse momento, fiquei morrendo de vontade de pedir o microfone para cantar o Hino a Santo Expedito que aprendi na missa da igreja da Liberdade e que, pelo visto, eles não conheciam. O hino é uma música para cima e bem animada, muito melhor do que a que foi cantada pela senhora com sua voz idosa e esganiçada. Mas não tive coragem de pagar aquele mico, mesmo porque havia um pedaço da música de cuja letra eu não me lembrava direito.

Leo já tinha atingido o limite máximo de sua extensa paciência e ficou no meio da ladeira, inclusive para fazer uma ligação para resolver mais um problema de trabalho. Eu e Marília seguimos até o final: presenciamos o momento em que a imagem foi recolhida à igreja e participamos de uma nova benção feita por outro padre.

Se você chegou até aqui, meus parabéns! Isso mostra uma persistência e resistência iguais ou maiores do que as que tivemos no Dia de Santo Expedito, enfrentando duas horas de missa e mais uma, de procissão. Espero que, diante de tamanho esforço, você tenha encontrado alguma recompensa. Após esse longo e pormenorizado relato, se pode perceber (não sei se você compartilhará da mesma percepção) quão rico é viver uma experiência como a que foi aqui narrada.

O que me motiva a incluir experiências como essa na minha história de vida é algo, de certa forma, semelhante ao que me fez querer: voar de paraglide, em Arraial D’Ajuda; fazer um mergulho de cilindro, em Fernando de Noronha; saltar de pára-quedas, na Ilha de Itaparica; fazer uma trilha de quatro dias, andando cerca de 11 horas por dia, dormir, sem tomar banho, numa barraca, a quatro graus abaixo de zero, antes de chegar em Machu Picchu; me vestir de Cinderela, junto com minhas amigas vestidas de Branca de Neve, Bela (a da Fera) e Alice (a do País das Maravilhas), e levar brinquedos, alimentos e diversão para crianças com câncer etc. Ou seja: a necessidade de sair da rotina e experimentar sensações diferentes.


A rotina sempre me foi nociva, desde criança. Como durante a nossa infância morávamos em casa e não tínhamos a oportunidade de brincar e jogar conversa fora com os amigos do prédio no playground, como faziam nossos colegas que moravam em apartamento, eu e Marília tínhamos de inventar o que fazer, para não sucumbir ao tédio. Uma vez pegamos a receita de churros de um cara que os vendia na porta do colégio, e, como não tínhamos a máquina apropriada para dar forma à massa, nossos churros ficaram horrorosos. Então, para dar um colorido aos bolinhos amorfos, resolvemos colocar, na massa, anilina verde e amarela, que minha mãe tinha comprado para decorar o último de nossos bolos de aniversário. O gosto também não tinha nada a ver com o dos churros que comíamos no recreio, e a receita recebeu o nome de “churros de Sarney”. Além da referência às cores que simbolizavam o nosso país, os churros eram tão ruins quanto o governo do primeiro presidente da República pós-ditadura.

Houve um dia em que resolvemos fazer um piquenique no jardim da vizinha. Essa nos expulsou de lá e nos perguntou rispidamente por que escolhemos o jardim dela e não o da nossa casa como local para o piquenique. Para nós, a resposta era óbvia: porque queríamos fazer uma coisa que fugisse ao habitual. A partir daquele dia, a apelidamos de “vaca rabugenta”, mas, como éramos crianças, não tínhamos noção da conotação pejorativa que hoje sabemos que o termo “vaca” tem.

Uma vez decidi fazer uma pesquisa de opinião. A arrumadeira da nossa casa era fã de Amado Batista, e eu defendia que somente ela gostava daquelas músicas de corno. Para tirar a teima, peguei um caderno e de cima do muro, gritava e perguntava a todo mundo que passava na rua: “Você gosta de Amado Batista?”. Era final de tarde, o horário em que os estudantes do Colégio São Paulo e os operários que trabalhavam no bairro do Itaigara, nas obras das redondezas, voltavam para suas casas. Como o número de operários que passaram pela porta da minha casa foi bem maior do que o de estudantes, a empregada lá de casa ficou toda feliz com o resultado da pesquisa, que mostrava que eu estava errada quanto à popularidade de Amado Batista.

Mesmo guria, um dia consegui parar a construção de um prédio em frente à minha casa (este estava sendo erguido na rua de baixo; e entre essa rua e a minha, existia uma área de mata verde, que separava minha residência do então futuro prédio). Havia um escorregador no meio do jardim da minha casa. Do alto dele, comecei a cantar “Como uma deusa”, imitando os trejeitos de Rosana. O vento era favorável e levava o meu canto até a obra. Ao final, todos os operários, que haviam parado o serviço para me assistir, aplaudiram a minha performance.

Outra coisa que fazíamos com freqüência, quando eu já era adolescente, Marília ainda não, era colocar músicas clássicas nas alturas, como “Bolero de Ravel” e “Carmina Burana”, e sair pulando e dançando pela casa e pelo jardim. Para mim, particularmente, aquilo era um ótimo remédio anti-monotonia.

Fernanda, minha amiga, deve se lembrar do dia em que me emprestou um vestido (eu tinha ido para casa dela direto do colégio e não tinha levado roupa) para irmos ao Shopping Barra. Como em mim o vestido ficou parecendo roupa de grávida, amarrei uma almofada na barriga e fui assim para o shopping, para nos divertirmos com a minha encenação de gravidez na adolescência. Como parte dos atos da minha comédia, tirei uma foto no meio da seção de bebê na ala infantil da C&A, entrei numa loja para perguntar o preço de um berço e disse à funcionária da McDonald’s que estava com desejo de comer um McChicken.

Creio que esses antecedentes também ajudam a explicar o que muitos não entendem: que graça vemos eu e Marília em participar de um evento como ao que fomos em Niterói no dia 19 de abril. Por fim, com a publicação desse texto aqui no blog (obedecendo à orientação que acompanha a oração a Santo Expedito publicada no verso dos santinhos que são distribuídos aos milhares pelos féis cujos pedidos foram atendidos), eu já agradeço antecipadamente a graça que Santo Expedito há de me conceder, com a prontidão que o caracteriza, retribuindo com a propagação de seu nome para todos que têm fé. Viva Santo Exxxxpeditôôô!!!!!