23 de março de 2008

O universo em desencanto, o coqueiro derrubado e o telefonema bomba

VOLTE UMA JOGADA, quer dizer, VOLTE UMA POSTAGEM. Se você chegou até aqui sem passar pelo texto anterior, recomendo que o leia antes deste. Isso não é necessariamente um pré-requesito. Se não quiser, pode avançar a leitura, pois são textos independentes, embora o primeiro a ser postado contextualize o segundo.


Na barraca de praia, a pedido de Rodrigão, que era o dono do CD, se ouvia a voz grave de Tim Maia cantando “Que beleza é curtir a natureza...”, mas eu não me sentia feliz ao ver a superfície prateada do mar de Garapuá, com as nuances de cor-de-rosa características do final de tarde. Ao contrário do que afirmava a música, eu não conseguia curtir a brisa e a paisagem belíssima daquele lugar. Eram os primeiros sinais de que algo não ia bem, nos últimos dias do ano de 2002.

Mas havia uma outra música do disco Racional que tinha mais a ver com meu estado de espírito. A melodia era bastante melancólica, e um dos versos falava de um livro intitulado “O universo em desencanto”. Davi, que passara oito meses em Londres tentando se encontrar, estava mais perdido e sem rumo do que nunca. Esse era o principal motivo do meu desencanto: as promessas de happy end não haviam se concretizado com a volta dele, e o tão sonhado reveillon não tinha o clima de romance que eu esperava, mesmo estando num lugar paradisíaco, ao lado do homem que eu amava e de quem estive longe por um tempo. O fato de ele finalmente estar próximo e parecer mais distante do que quando um oceano nos separava me angustiava profundamente.

“Um futuro promissor” foi o que ele nos desejou no brinde com champanhe, após o beijo da virada de ano. Apesar de achar que aquelas palavras não combinavam muito com Davi, jamais me passaria pela cabeça, a idéia de um futuro promissor sem ele junto de mim. A frase, obviamente, se referia ao nosso futuro como um casal, mas o destino a interpretou de outra maneira.

A dança estava apenas começando, e somente um dos sete véus da ilusão havia caído, em Garapuá, no início do ano de 2003. Daí em diante, eu já não me empolgava como antes, quando Davi falava em “nossa casinha” ou fazia planos de casamento. Mesmo assim, eu acreditava que se tratava de uma crise passageira no nosso namoro. Afinal, eram muitas as expectativas, de ambos os lados, que havia em torno da viagem a Londres; portanto, as frustrações também deveriam ser compreensíveis.

As revistas femininas anunciavam um ano regido por Vênus, o planeta do amor. O horóscopo da Cláudia, para o meu signo, dizia:

“De janeiro a abril, o período é propício ao isolamento e à introspecção. Você vai se sentir bem em casa ou com amigos íntimos. O importante é não levar tudo a sério demais e diminuir as expectativas da vida amorosa. Entre junho e setembro, com a insatisfação amenizada, você estará mais fortalecida e confiante. Para manter esse clima, evite discussões e procure conservar a calma. A partir de outubro, os bons aspectos de Vênus e Urano trazem a solução dos impasses. Você ampliará sua percepção, verá com outros olhos o parceiro e se sentirá muito mais livre para amar sem barreiras. Cultive: o pragmatismo, com atitudes e palavras otimistas, que encorajem a autonomia do parceiro. Evite: a nostalgia. Ter algumas cicatrizes no coração é inevitável. Cabe a você escolher revisitá-las ou seguir em frente”.

O que a emoção é capaz de fazer com a razão, em um ser de Câncer, mesmo que ele tenha ascendente em Libra! E o que é a fragilidade humana: a pessoa estuda, lê McLuhan, Pierre Lévy, Edgar Morin e Paulo Freire, torna-se Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas e vai apegar-se às previsões de uma tal de Teresa Kawall, que nem se sabe se é astróloga. Pois é, comecei a seguir à risca os conselhos do horóscopo: pragmática, sempre fui, e não custava nada levantar o moral do meu parceiro, que, principalmente, nos primeiros meses do ano, realmente passou por uma fase meio pra baixo; visitinhas às cicatrizes no coração, nem pensar! E eu seguia em frente, sempre tendo como perspectiva o mês de outubro, que traria os bons aspectos de Vênus e Urano. Mas o que estava escrito nas estrelas tinha um significado um pouco diferente daquele atribuído, por mim, ao texto da revista Cláudia do mês de janeiro.

Ao longo do ano, passamos por períodos de altos e baixos, e as constantes oscilações eram permeadas, nos momentos críticos, de conversas para discutir a relação, as conhecidas DRs. Estas se revestiam de um tom mais maduro e diferiam bastante das chorumelas (discussões chatinhas devido aos pequenos problemas cotidianos de um casal) de outros tempos; eram consideradas, por nós, como ajustes necessários para a mudança de patamar prevista, já que pensávamos em dividir uma casa, as contas e as responsabilidades, ter filhos (Amir[1] e/ou, talvez, Malu[2]) e deixar de ser apenas namoradinhos.

Numa noite, assistimos ao documentário sobre a Oficina de Atores do filme Cidade de Deus, que vinha como extra no DVD e que eu exibiria para meus alunos. No depoimento de Gutti Fraga, coordenador do projeto Nós do Morro e responsável pela oficina, ele justificava o sucesso do filme afirmando que haviam construído uma boa base. “Eu acredito muito na base”, enfatizava. E foi a base sólida sobre a qual a nossa relação havia sido construída que impediu que terminássemos o namoro, duas noites depois daquela em que vimos como foi feita a preparação dos atores de Cidade de Deus, como desdobramento de uma DR que aconteceu ainda na mesma noite em que assistimos ao DVD. Respeito, admiração, confiança, cumplicidade e muito tesão (mesmo depois de 8 anos juntos) eram os pilares do nosso relacionamento.

Nós também acreditávamos muito na base. No entanto, uma cena que presenciei em Busca-Vida abalou um pouco a minha crença. Aquilo me marcou tanto que acho que foi uma espécie de prenúncio do que viria acontecer um tempo depois. Antes é preciso contextualizar que o clima entre nós era bom naquele fim de semana, a “insatisfação estava amenizada”, e eu me sentia “mais fortalecida e confiante”. Dona Áurea, a avó de Davi, ordenou ao caseiro que derrubasse um coqueiro que se encontrava bastante inclinado pela ação do vento, pois havia o risco, ainda que não fosse iminente, de ele vir a cair sobre a casa. Davi, que estava acostumado (e até saudoso, conforme seus comentários) aos serviços braçais, depois ter trabalhado como operário de obra em Londres, disse que ele mesmo se encarregaria da tarefa. Pegou o machado e, à custa de muito suor, empregado em lentos e duros golpes, pôs o coqueiro abaixo.

Enquanto as farpas voavam com as machadadas de Davi, eu pensava nas raízes que compunham uma base capaz de sustentar um tronco tão elevado e uma copa tão pesada, erguidos em direção ao céu. Depois de finalizado o trabalho, restava apenas um toco feio como a lembrança do que antes fora uma árvore imponente. Eu detinha meu olhar no cerne avermelhado da base que ficou presa à terra, e uma sensação de dor pairava no ar. Ouvia-se novamente o som seco dos golpes do machado, naquele instante empenhados em transformar em banco o tronco caído no chão. Praticamente cheguei a pressentir, mas não podia imaginar, de forma alguma, que o corte lento e profundo, como o verso de Cazuza, mais tarde, seria entre Davi e eu.

No dia 30 de outubro de 2003, vivi meu 11 de setembro. O elemento surpresa e as repercussões do fato, que não só abalou a maior potência mundial, como, de um dia para o outro, alterou toda configuração política e econômica global, fazem com que o ataque terrorista promovido por Bin Laden seja o que, por comparação, melhor ilustre o efeito que a resolução de terminar o namoro, anunciada por Davi num telefonema, teve sobre mim. Quando ele falou que via com clareza que a nossa relação seria inviável a longo prazo, isso teve um impacto tão forte quanto o provocado pelo choque, seguido de explosão, do primeiro avião contra uma das torres gêmeas. A conversa prosseguiu por alguns minutos, e o segundo avião atravessou meu coração no momento em que Davi confirmou que estava seguro da decisão que tinha tomado, pouco antes de desligarmos o telefone.

Da mesma forma que aqueles que viram as imagens do atentado em Nova York pela televisão e as fotografias estampadas nas primeiras páginas dos jornais e nas capas de revistas do mundo inteiro custavam a acreditar que aquilo fosse verdade, também parecia coisa de cinema que alguém (Davi) pudesse terminar um namoro de oito anos e meio, falando ao celular, no meio da Praça Municipal, sob o sol do meio dia e tendo a sua frente a vista espetacular da Baía de Todos os Santos.

Se para os que receberam a notícia (diferentemente do episódio do 11 de setembro, estes, no nosso caso, foram muito poucos num primeiro momento) aquilo soava como inacreditável, para mim, era mais difícil ainda processar a informação e aceitar a nova configuração, cujo primeiro cenário era completamente desastroso e desesperador. Para efeito de contextualização, aqui cabe uma breve retrospectiva dos fatos que antecederam o telefonema bomba. No dia anterior, Davi havia me ligado, todo feliz, no meio da tarde, para me comunicar que o projeto no qual ele estava trabalhando, provavelmente, seria renovado e que isso representaria a possibilidade de ele ganhar um salário fixo nos próximos dois anos, o que, segundo suas palavras, tornava mais concreta a perspectiva de casamento em curto ou médio prazo. Nesse mesmo dia, à noite, devido a um motivo banal, tivemos uma pequena discussão que nem chegou a se configurar como tal: eu estava à beira da exaustão depois de ter passado duas semanas corrigindo pilhas de trabalhos madrugada adentro, e Davi queria que eu fosse para casa dele, em vez de ele ir para minha, alegando que também estava cansado. Eu considerei aquilo um comportamento egoísta, já que, em outras duas ocasiões naquela semana, ele havia superado o cansaço para sair com os amigos, mas, embora um pouco chateada, encerrei a conversa numa boa e fui dormir para recuperar o sono perdido, pois, além de achar injusto, não estava em condições físicas de sair de casa àquela hora para me encontrar com ele. No dia seguinte, ele me ligou quando eu estava na faculdade. Eu falei que já tinha entrado na sala e que só estava aguardando a outra professora sair, para começar a minha aula. Ele disse: “Só liguei mesmo para dar um beijinho”. E eu respondi no mesmo tom frio com que atendi a ligação, pois queria demonstrar que estava insatisfeita com a atitude dele na noite anterior: “Quando chegar em casa, eu ligo para você”. Foi exatamente o que fiz, e as minhas queixas externadas durante a conversa contribuíram para que ele, seguindo um impulso, resolvesse dar um fim ao relacionamento, de forma repentina e por isso mesmo devastadora.

A imagem das torres ruindo lentamente e queimando por dentro é muito mais eloqüente, para representar o modo como me senti, do que a do coqueiro derrubado em Busca-Vida. Nos três casos (incluindo aí o meu namoro com Davi), a base sólida não foi capaz de sustentar a estrutura firme e tão bem construída, tamanho foi o impacto causado pelo golpe sofrido. Bin Laden conseguiu atingir em cheio o coração financeiro do planeta, e partir daí a ordem mundial nunca mais seria a mesma; meu coração também tinha sido brutalmente atingido, e Davi, que era o centro dele, assumiria um outro papel em minha vida, que, desde então, mudaria substancialmente. Das torres que um dia foram as mais altas do mundo, logo depois da tragédia, só restavam os escombros e a fumaça decorrente da explosão. A visão dos dois prédios lado a lado não fazia mais parte da paisagem da ilha de Manhattan; assim aconteceria comigo e Davi.

Em meio à comoção provocada pela minha “tragédia” pessoal, eu não tinha a menor condição de fazer qualquer tipo de previsão sobre o que aconteceria depois daquilo e não podia me valer da opinião dos especialistas em análises sobre a conjuntura pós-desastre; no máximo, contava com palavras de consolo da família e dos amigos mais próximos. A dor era absurdamente forte; era como se os gritos e os choros das milhares de vítimas do atentado terrorista em Nova York e daqueles que ali perderam seus amigos e familiares ecoassem dentro de mim. Qualquer tentativa de descrição desse sentimento pode parecer exagero e/ou perde a força ao ter de se valer desse tipo de comparação, talvez um tanto clichê, para caracterizar a situação, mas é, ao mesmo tempo, insuficiente para dar a dimensão exata do meu sofrimento.

É de Caetano uma frase que fala de quão é impressionante “a força que as coisas parecem ter, quando precisam acontecer”. E foi mesmo incrível eu ter encontrado uma força interna que me fez resistir ao impulso de ligar para Davi enquanto aguardava que ele me ligasse novamente, mesmo porque eu merecia uma explicação mais detalhada e esclarecedora sobre o que tinha acontecido. Não queria que uma ligação minha o induzisse a voltar atrás na decisão; se isso tivesse de acontecer, deveria ser por iniciativa dele, e eu não poderia exercer qualquer tipo de pressão nesse sentido, sob pena de depois ter de viver numa permanente insegurança, sem saber se ele o fez, por vontade própria ou por influência minha. O telefonema bomba aconteceu ao meio dia de uma quinta-feira, e o outro, aquele telefonema por mim esperado, só veio a acontecer na noite de domingo.

Um relacionamento de tanto tempo não poderia ter seu fim decretado numa conversa por telefone. Ou melhor, o tempo de convivência não era o principal fator agravante; a grande questão era: um grande amor não podia acabar assim (“feito espumas ao vento”). Nos encontramos na segunda-feira, para ter a esperada conversa cara a cara, olhos nos olhos, cheios de lágrimas, no caso de Davi; eu não sei como encontrei uma serenidade, advinda da tal força de que fala Caetano, e consegui conter meu pranto. Enquanto ele chorava copiosamente à medida que tentava justificar sua decisão por meio de uma argumentação demasiadamente superficial, eu procurava mostrar as conseqüências que aquilo teria em nossas vidas, e sobre as quais eu passara os últimos dias refletindo, quando o desespero dava uma trégua. Havíamos chegado num ponto limite, uma nova fase seria inaugurada, e havia duas possibilidades: romper definitivamente ou renovar por tempo indeterminado o “acordo tácito” que mantinha o nosso vínculo. Para mim, uma decisão como aquela não podia ser tomada repentinamente; necessitava de um tempo de reflexão para ser sacramentada. E a minha proposta era justamente dar a Davi esse tempo, para que, longe de mim e da minha influência, ele pudesse escolher uma entre as duas opções que estavam colocadas.

O período ― este durou um mês ― que antecedeu a decisão final foi marcado por uma agonia insuportável, devido à indefinição que marcava aquela primeira separação. Tudo, para mim, era novo e motivo de muito sofrimento: estar longe de Davi, não saber como ele estava reagindo à situação e, o que era pior, não conseguir imaginar o que viria dali em diante.

Antes de nos despedirmos, após a dolorosa conversa naquela segunda-feira, Davi me disse: “O rompimento nunca será definitivo”. Aquela sentença, em vez de me animar, tinha um outro sentido para mim. Um sentido que não só foi interpretado do ponto de vista semântico, mas, literalmente, sentido na pele, na carne: naquele instante, pude experimentar o peso do grilhão de ferro com que Davi me acorrentava a ele. E eu sabia que aquela amarra teria de ser quebrada, caso ele optasse pela nossa separação, e que eu teria de lutar com todas as minhas forças para não me deixar escravizar por aquele amor que, de fato, até então por minha livre vontade, me prendia inexoravelmente a ele.

E um beija-flor marrom, pousado numa amendoeira, assistiu àquela nossa despedida, enquanto, coincidentemente, e/ou por obra do destino, Caetano cantava no rádio do meu carro, sintonizado na Nova Brasil: “Agora, que faço eu da vida sem você? Você não me ensinou a te esquecer, você só me ensinou a te querer, e te querendo eu vou tentando me encontrar...”.



Durante meses, eu vivi exatamente o que diziam aqueles versos, popularizados na trilha sonora do filme Lisbela e o Prisioneiro, até que um dia o grilhão se rompeu sem que eu me desse conta disso. E foi assim que vivenciei a sensação de liberdade e constatei que já não era mais prisioneira daquele amor incondicional. O horóscopo da Cláudia, com um certo atraso, é verdade, acabou se concretizando, na medida em que ampliei a minha percepção e passei a ver com outros olhos o meu antigo parceiro, além de me sentir muito mais livre para amar, sem barreiras, a vida, a mim mesma e quem quer que apareça em meu caminho para ocupar novamente meu coração.

Salvador, 21 de abril de 2005,

Cristiana Serra, um tanto afetada emocionalmente pelas lembranças que vieram à tona, de forma catártica; mas, de certo modo, orgulhosa por levar a cabo a difícil tarefa de escrever sobre essa fase da separação. Acredito que ainda haverá outros textos sobre o período que seguiu o fim do namoro com Davi, mas esses certamente não serão tão dolorosos como este que acabei de redigir.


[1]Nome escolhido, por Davi, devido à sua admiração por Amir Klink, mas de que eu não gostava por ser um nome estrangeiro e porque temia que meu filho, inspirado no nome, se tornasse um navegador solitário.
[2] Nome escolhido, por mim, por ser curtinho e forte, mas de que Davi não gostava por causa da possível rima.

O que é meu não é mais seu

“Cristiana,
(...) Foi impossível ler isso sem deixar de ter, todo o tempo, como pano de fundo na memória, aquela cena de Almodóvar, em ‘Fale com Ela’, em que o jornalista escritor de guias de viagem, Marco, sai de um pocket show de Caetano, se afasta dos outros, a toureira-então-namorada se aproxima, pergunta o que foi, e ele (depois de dizer que o canto de Caetano lhe arrepia os pelos da bunda) diz algo assim: ‘o amor, quando acaba, é a coisa mais triste que existe, como diz uma canção de Jobim’. Adoro aquela cena e lendo você lembro dela.”



Esse foi o comentário que Malu, a que, por sorte (uma vez que isso estreitou nosso vínculo), elegi como minha primeira crítica especializada, fez ao ler o texto que escrevi sobre o término do meu namoro com Davi. Acho interessante publicá-lo aqui, não só porque ele fala de um momento que marcou indelevelmente a minha vida, mas também porque, de certa forma, ele representa uma espécie de “antecedentes” desses outros textos que caracterizam as “pequenas porções de diversão”.

O que diz a música de Jobim citada pelo personagem de Almodóvar lembrado por Malu corresponde, parcialmente, à minha experiência. O fim do meu namoro com Davi não coincidiu, propriamente, com o fim do amor; este só acabou muito tempo depois. A coisa mais triste que existe talvez seja, justamente, a separação quando o amor ainda existe. Eu, pelo menos, tenho motivos de sobra para acreditar nisso.

Com base no que vivi, posso estabelecer um paralelo com uma outra música de Jobim (cantada por Caetano, em "Prenda Minha"), cujo título é “Meditação”, uma vez que passei por todas as etapas que são descritas nesta canção. Acreditei no amor, no sorriso e na flor, e sonhei, sonhei, e como sonhei! Abriguei a tristeza de ver tudo isso se perder e procurei o caminho a seguir, já descrente de um dia feliz. Chorei, chorei, e tanto que o pranto, quando secou, secou de vez. Desde então, ainda não vivenciei, de forma plena e em sua totalidade, a volta do amor, do sorriso e da flor, mas a fase da tristeza, felizmente, acabou, e isso já faz um bom tempo. Não vou dizer que, nesse período, não tive os meus amores. Estes não eram bem do tipo de mandar flores, mas me trouxeram o sorriso quase abobado de quem só vê flores e mais amores, e é isso o que importa.



A frase que costuma ser usada como consolo é verdadeira: “tudo na vida passa”. Existem aqueles que fazem piadinha dizendo que “tudo é passageiro, menos o motorista e o cobrador”. Há ainda outros que gostam de usar um complemento que eu acho muito do sem gracinha: “Tudo na vida passa, até a uva passa”. Lembro de uma variação sobre esse tema, que me tocou profundamente. Eu ainda estava descrente de um dia feliz, pois ainda sofria por Davi, embora já estivesse procurando o caminho a seguir. Tinha ido para um show do “Cordel do Fogo Encantado”, na Concha Acústica. Lá pelas tantas, antes de começar a “cantar pra saudade com seu vestido vermelho”, o vocalista performático anunciou na introdução da música: “Tudo passa, na vida, tudo passa, mas nem tudo que passa a gente esquece”.



Por mais tristes que sejam, algumas coisas, mesmo quando passam, não são nem devem ser esquecidas, porque são passagens importantes que compõem a nossa vida. Foi por isso que mais de um ano depois que terminei o namoro com Davi resolvi escrever sobre a nossa separação, sem a lente da dor e até com um certo toque de humor.

Na época em que namorávamos, Davi adorava a empregar a frase “o que é meu é seu”, inclusive porque, muitas vezes, se beneficiava com isso. Hoje somos amigos, e toda vez que ele ensaia algo que sugere essa idéia, como na ocasião em que me convenceu a lhe dar um anel de lua e estrela que eu adorava, eu respondo: “Aonde? Nem vem que o que é meu não é mais seu. Se contente com seu FGTN, fundo de garantia por tempo de namoro, isto é, os presentinhos que lhe dei quando éramos namorados”.

O amor acabou, mas restou a amizade. E tenho o raríssimo privilégio de poder afirmar que meu ex-namorado, ex-futuro-pai-de-meus-filhos, ex-amor-para-toda-vida, é atualmente meu bróder ― assim mesmo, bróder em vez de brother, na forma aportuguesada da gíria, com uma forte conotação de cumplicidade, que poucos irmãos de sangue chegam a ter entre si.

O anel de lua e estrela Davi jogou no mar. O amor que ele me tinha não era pouco, porém se acabou. O que eu tinha por ele se transformou em amizade, o que não deixa de ser uma outra forma de amor. O certo é que nós demos a meia volta, ou melhor, uma meia volta inteira por cima. E, na ciranda da vida, vamos todos cirandar, mesmo que a saudade no peito faça força para o tempo parar. Dias sim, dias não, sobrevivi sem nenhum arranhão. E, em meio às “pequenas porções de diversão”, vou lhes apresentar um texto que fala de um momento em que o tempo rodou num instante as voltas do meu coração. As rimas foram involuntárias; as referências a letras da nossa música popular, obviamente, foram de caso pensado. Vamos chamar o síndico, pois o próximo texto começa com Tim Maia.

15 de março de 2008

Pé de aliche?????

Minha querida e única irmã hoje mora no Rio de Janeiro e trabalha num escritório de arquitetura na Barra da Tijuca. Já está no Rio há mais de dois anos, mas, tirando um “s” um pouco mais chiado (isto é, com som de xxxxx), de vez em quando, e uma entonação levemente diferente que só eu consigo notar, não perdeu o sotaque de sua terra. Muito pelo contrário. Ela continua empregando com a mesma freqüência o “Oxe!” como interjeição de surpresa e ou de discordância, e os cariocas com os quais ela convive, muitas vezes, são obrigados a consultar o dicionário de baianês. A primeira vez em que a faxineira foi fazer uma limpeza no apartamento dela, Marília disse para a moça: “Não repare, não. Isso aqui tá um mangue. Acabei de me mudar”. E a criatura olhou para o chão, para o teto e para tudo que estava em volta, com aquele ar interrogativo, até que Marília percebeu e explicou: “Ah, me desculpe. Na Bahia, quando a gente fala ' Tá um mangue', é para dizer que está muito bagunçado”.

Além da fala mais arrastada e do léxico exclusivo do vocabulário baiano, há outros traços que não negam a origem de (observem que, por sermos baianas, tanto eu como Marília usamos “de” e não, “da”, como fazem os cariocas) minha irmã, como podem atestar seus colegas de trabalho. Quando o bicho está pegando (os cariocas também usam essa expressão), ela invoca Santo Expedito e coloca um santinho (de papel impresso, daqueles que as pessoas distribuem quando fazem promessa; pelo menos, aqui em Salvador é desse jeito) ao lado do computador. O boy (antigamente, quem exercia essa função era chamado de contínuo, tanto no Rio como na Bahia) que trabalha no escritório acha isso um absurdo, pois a igreja evangélica da qual ele é fiel condena a devoção aos santos. “Onde já se viu, em vez de Jesus, ficar rezando para homem morto?”, brada ele indignado. E sempre que ouve esse comentário, Marília não consegue deixar de pensar na reação que ele teria se soubesse da Iemanjá gigante que eu tenho no quarto e fica numa prateleira ao lado de minha cama. Outro dia, o cristão ficou de cara fechada e foi se queixar com a secretária, porque Marília e os outros arquitetos estavam ouvindo “música de macumba”. As “músicas de macumba” em questão eram de um CD de Maria Bethânia (“Dentro do mar tem rio”) que Marília tinha levado para ouvir no escritório. E foi para não despertar a ira e a intolerância religiosa do boy evangélico que ela achou melhor deixar no carro as flores que havia comprado para Iemanjá no dia 02 de fevereiro. No intervalo de almoço, ela aproveitaria para ir até a praia fazer suas oferendas. No entanto, minha irmã não abriu mão de ir para o trabalho vestindo uma blusa com a imagem de Iemanjá que eu comprei para ela usar no dia da apresentação de seu trabalho de conclusão de curso na faculdade (como o projeto dela era um oceanário, a referência à Rainha das Águas, que inclusive foi mencionada na fundamentação teórica do trabalho, era totalmente pertinente).

Como se vê minha irmã é herdeira legítima do sincretismo religioso presente na cultura baiana. É certo que ela tem suas crenças e mandingas, mas nunca sequer pisou num genuíno terreiro de candomblé em Salvador (apenas em uma única ocasião consultou o ifá ― jogo de búzios ―, na sala de um apartamento no Catete, no centro da cidade do Rio de Janeiro, e foi a uma roça de santo em Niterói; isso porque foi me acompanhar numa consulta e num trabalho de limpeza que fiz com uma mãe de santo que é tia de minha madrinha e mora no Rio). Portanto, a pecha de macumbeira, não lhe cabe de modo algum. Até porque, é bom ressaltar, isso não deveria ser uma pecha nem para ela nem para ninguém; afinal, respeito à liberdade de culto é bom, e todos deveriam gostar.

No entanto, minha irmã faz por merecer a fama que tem, principalmente aos olhos do boy evangélico. Antes de voltar das férias em Salvador, ela foi à Ceasa (Central de Abastecimento de Salvador) do Rio Vermelho comprar acarajés e abarás congelados, que seriam levados para o Rio em sua bagagem, e, já que tinha passado por uma barraca de ervas, resolveu comprar também um banho “chama emprego” para o namorado de uma amiga do escritório que estava desempregado e outro de “comigo ninguém pode” para dar de presente ao chefe de meu cunhado.

Tudo isso explica o raciocínio da arquiteta do escritório, a mesma que namorava o rapaz desempregado, quando Marília lhe receitou “Pedialyte” para ajudar a amenizar o mal estar decorrente de uma infecção intestinal. A moça não estava indo para o trabalho, e minha irmã ligou para saber do estado de saúde dela. Ao final da conversa, a amiga de minha irmã perguntou:

― Onde eu acho para comprar? ­

― Em qualquer farmácia. Você nunca tomou? Minha mãe sempre me dava, quando eu tinha dor de barriga ― disse Marília.

― Obrigada pela dica e por ter ligado. Vou procurar ― ela agradeceu, esperançosa de que a sugestão de Marília surtisse efeito.

Quando desligou o telefone, a menina ficou intrigada com a medicação indicada por minha irmã. “Pé de aliche? Será que é uma planta para fazer chá? Aliche que eu saiba é um peixinho que se coloca na pizza, parece um atum mais salgado. Mas deve existir uma planta com o mesmo nome. Não vou nem comentar aqui em casa, para não acharem que é coisa de macumba da Bahia”, pensou ela enquanto procurava o telefone de uma farmácia.

Ligou para a farmácia:

― Por favor, vocês têm “pé-de-aliche”?, perguntou à funcionária que atendeu.

― Temos sim.

― Têm? ― a colega de Marília não esperava por aquela resposta, pois achava que não se vendia aquilo em farmácia.

― Sim, senhora. A senhora vai querer normal ou com sabor? Temos de framboesa, de morango...

― Framboesa? Morango? Como assim?

― Esses são com sabor, mas temos o normal, que é o que a maioria prefere ― disse a funcionária da farmácia.

― Mas eu estou procurando uma planta, para fazer chá. É uma planta medicinal. Pé-de-aliche.

― A senhora me desculpe, mas disso nunca ouvi falar. Não conheço nenhuma planta com esse nome.

― Tudo bem, obrigada. Eu sabia que não iria encontrá-la em farmácia.

Quando o pai da colega de Marília chegou em casa, vendo o estado da filha perguntou:

― Filha, você ainda está assim? Está tomando algum remédio, alguma coisa que alivie o mal estar?

― O que eu posso tomar, além do “Floratil”? É preciso deixar sair o que provocou a infecção; os médicos dizem que é melhor não tomar remédio para prender. O pior é que não consigo comer nada. Além do mal estar do enjôo, ainda tem a fraqueza. Desse jeito, não tenho condições de ir trabalhar.

― Por que você não toma “Pêdialyte”? Vai se sentir melhor.

― O senhor conhece isso????? ― perguntou, espantada.

― “Pêdialyte”. Claro, filha. É um soro, é indicado justamente nos casos de desitratação provocada por diarréia aguda.

― Quer dizer que não é uma planta para fazer chá?

― Óbvio que não. De onde você tirou essa idéia? ― respondeu o pai da menina, achando que a fraqueza já estava afetando as idéias da filha.












OU













Moral da história: De um “é” para um “ê”, existe uma enorme diferença. Essa vida é uma grande piada, até quando se está na merda.

14 de março de 2008

O roubo das palmeiras

Esse texto foi escrito nos últimos dias de maio de 2005. Lena não trabalha mais na Pizza Hut, mas continua sendo uma pessoa diferente, isto é, fora do comum, o que quer dizer o mesmo que extraordinária, e, por isso, especial. Por tudo isso e muito mais, é minha grandessíssima amiga (como não sou a favor de ranking de amizade, é melhor dizer assim; se fizesse um top ten, ela certamente estaria no alto da lista). Foi ela quem me apresentou a bicha, que também é muy querida, e me contou a história abaixo. Por mais fiel ao relato de Lena, este texto não terá a mesma graça do caso contado pessoalmente por ela, que realmente tem todo um talento cênico para a arte da narrativa oral e sabe entreter qualquer platéia. Mas espero que as limitações próprias da palavra escrita (das minhas, pelo menos) sejam superadas pela comicidade dos fatos. Vamos ao texto, na forma como ele foi originalmente escrito.



Lena e a Bicha em: o roubo das palmeiras




Eu nem deveria escrever sobre isso, uma vez que o caso que aqui será narrado constitui um ato ilícito, e, o que é pior, este foi praticado por uma amiga minha, tendo como cúmplice (na verdade, a palavra mais certa seria comparsa, se não pesasse a hierarquia da condição profissional) uma bicha[1] que trabalhava para ela. Mas trata-se de uma história muito engraçada para ficar armazenada, e correndo o risco de se perder, nos arquivos da memória.

A amiga em questão é Lena Rivas, gerente de marketing da Pizza Hut, que, na ocasião, estava incumbida de preparar um treinamento para os funcionários. O slogan “Pizza Hut: diferente como você” sintetizava a idéia que seria então explorada pelo marketing; e o primeiro passo era fazer com que os funcionários da empresa a internalizassem, para que pudessem agir de forma que os clientes realmente se sentissem pessoas diferentes, isto é, pessoas fora do comum, o que quer dizer o mesmo que extraordinárias, e, por isso, especiais. Tendo em vista esta proposta, Lena precisava cuidar da produção de um treinamento que fosse algo original ou, pelo menos, que fugisse do habitual. Mas é preciso ressaltar que a única coisa realmente inusitada foi o que ela fez para conseguir um elemento (dois, para ser mais exata) que, segundo ela, não poderia faltar na decoração do local onde ocorreria o evento.

Não sei o que motivou a escolha, só sei que a idéia não partiu de Lena, mas “Havaí” era o tema que nortearia a concepção do cenário e das dinâmicas que seriam realizadas no treinamento. Soube que uma delas, essa sim concebida por Lena, foi colocar os funcionários para seguir os passos das coreografias que eram feitas na pista de dança do Café Cancun, boate da qual a minha amiga já foi freqüentadora assídua. Ao som da mesma seleção musical feita pelo DJ do Cancun, Lena pôs os funcionários a dançar, entre outras músicas, uma cujo refrão diz “Follow the leader, leader...”. A líder, animadora e coreógrafa, obviamente, foi ela mesma, que rebolava, subia e descia, ia para frente e para trás, para um lado e para o outro, acompanhando as instruções cantadas na música (“arriba”, “abajo”, “derecha”, “izquierda”) e repassando-as para os que a seguiam na sua performance. Além de descontrair a galera, aquilo trazia a seguinte mensagem, que deveria ser incorporada como lição do treinamento: ou seja, era uma demonstração de que, se uma pessoa tão comportada (Deus está vendo!) como a gerente de marketing da Pizza Hut podia fazer aquilo (leia-se pagar aquele mico), todos poderiam assumir atitudes diferentes, conforme o novo lema da empresa, criado pelo setor do qual Lena era integrante.

A supracitada dinâmica liderada por Lena já foi uma tarefa da qual ela ficou encarregada durante o evento; antes disso, coube a ela fazer toda a produção para decorar o ambiente de acordo com a temática. Para tanto, Lena contratou os serviços de Eduardo, que é chamado por ela, e assim também o será chamado nesta narrativa, de “a bicha”. A bicha já foi funcionário do setor de festas de aniversário da Pizza Hut, em que era responsável pela decoração; por seu carisma e talento, subiu de posto, mas foi cortado do quadro da empresa quando esta teve de fazer uma redução de custos; e hoje presta serviços esporádicos, de forma terceirizada, principalmente, em eventos como o tal treinamento sobre o qual se está falando.

Segundo os comentários de Lena, a bicha é um mestre em decoração. E aqui cabe um nem tão breve parêntese antes de narrar o fato principal de toda essa história, inclusive para explicar como esta veio à tona em uma conversa no Aice Sushi. Lena, que já conhecia as habilidades artísticas da bicha, cuja criatividade revelava-se na ornamentação das festas de aniversário realizadas na Pizza Hut, não só a (ou “o”, já que biologicamente é homem) ajudou a alcançar um cargo melhor na empresa, como também costumava requisitar seus serviços nas festinhas promovidas no “albergue”, como era apelidado o apartamento dela e de Susana, nos períodos em que este estava desocupado, isto é, sem inquilinos.

O papo sobre “a bicha”, do qual emergiu a tal história da época do treinamento dos funcionários, começou durante uma discussão sobre qual poderia ser o tema da decoração da festa de aniversário que Lena talvez faria, no “albergue”, para comemorar seus 31 anos. Estávamos conversando, em uma mesa do Aice Sushi, eu, minha irmã Marília, a única que tenho, Lena, e Carla e Lana, que também são irmãs e são amigas de Lena, e hoje, minhas também (isso é que eu chamo de contextualização!). Ao longo da conversa, Lena, Lana e Carla lembravam e contavam para mim e Marília como eram as decorações e quais foram os temas das festas anteriores, que aconteceram numa época em que elas já eram amigas, mas eu, muito menos Marília, não as conhecia.

Houve uma à fantasia; outra que foi uma festa dark, para a qual a bicha comprou uma massa especial com que fez teias de aranha para serem espalhadas por todos os cantos, além de enfeitar a sala com balões pretos e roxos; e, em todas elas, independentemente da temática, eram colocadas luzes vermelhas, de modo que, pela iluminação, dava perfeitamente para identificar de onde vinha o barulho que ecoava por todo o quarteirão. Lena comentou que, quando o videokê era moda, para desespero dos vizinhos, ela e seus convidados alugavam o aparelho e, ao final ou no início de cada música, ainda tinham a cara de pau de dizer: “Eu queria agradecer, especialmente, ao vizinho do 1501, pois sem a boa vontade dele não seria possível fazer essa festa”; “Oh, porteiro, essa vai, especialmente, para você e para toda a galera da rua que está nos ouvindo”. Ela também lembrou que uma amiga uma vez levou uma caixa com gelo seco, mas este, por falta da infra-estrutura apropriada, não teve o efeito desejado, uma vez que tinha de ser colocado numa bacia bem no meio da sala (pois não havia ninguém que se dispusesse a sair, com a bacia na mão, rodando pelo apartamento) e evaporava em pouco tempo.

“Você lembra de um aniversário seu que tinha um bolo de arco-íris? Depois eu fiquei sabendo que o arco-íris é o símbolo dos homossexuais, e a bicha, descarada, nem para dizer. Você sabia disso?”, disse Lana, insinuando que a bicha teria se aproveitado da situação e de uma suposta ignorância de Lena, para difundir um emblema do mundo gay.

“Eu sabia sim, mas não me importei, porque achei o colorido bonito”, disse Lena, deixando claro que não via nenhum mal naquilo.

“E se achassem que você era lésbica?”, ainda insistiu Lana.

“E eu estou me importando com o que vão achar?”, respondeu Lena.

“Ah, eu me importaria. Imagine, acharem que eu sou lésbica por causa de um bolo de gay... Eu não ia gostar nada disso!”, disse Lana antes de Lena[2] introduzir um novo tema na conversa.

Finalizado este diálogo, Lena começou a relatar como foi feita a decoração do referido (já várias vezes) treinamento para os funcionários da Pizza Hut, cujo tema (também já citado) era Havaí: “A bicha é um perigo. Ela chega no Le Biscuit e diz: ‘eu quero esse, esse, e mais esse, todos esses’. Para compor o cenário do Havaí, espalhou areia por todo o salão. Pensem no trabalho que deu para limpar no dia seguinte! Mas o pior de tudo foi arranjar as palmeiras”. Foi aí que Lena deu início à narrativa da história que me motivou a escrever esse texto, a qual, finalmente, será aqui contada, logo em seguida. Agora sim começa o que poderia ser um conto, e não uma crônica, com o título de “O roubo das palmeiras”.

Lena conseguiu até uma prancha de surf com seu vizinho, para integrar o cenário do salão onde seria dado o treinamento. Segundo ela, a decoração da bicha estava impecável, mas faltava alguma coisa para criar a atmosfera do Havaí. Chegaram à conclusão de que precisavam de duas palmeiras, já que, obviamente não apenas pelas dimensões do espaço, seria impossível colocar dois coqueiros no local. Como as que encontraram à venda no mercado eram muito caras, Lena desistiu de providenciar palmeiras de verdade e mandou a bicha dar um jeito, nem que tivesse de fazer de papel crepom.

Ao final do dia, ao ver o salão todo arrumado, Lena não se conformava com a ausência das palmeiras: “Elas ficariam tão belas, uma em cada canto da parede...”

“Vai dar quinhentos reais numa palmeira, por acaso???!!! Eu preciso ir para casa, viu?”, disse a bicha numa tentativa de fazer com que Lena desse o serviço por encerrado.

Iniciou-se um impasse, uma vez que Lena não queria abrir mão daquele elemento cenográfico e cobrava uma solução por parte da bicha.

“Trezentos reais numa palmeira não tem condição. E agora o que fazemos? Será que a gente encontra alguma palmeira para o lado da praia?”, dizia Lena esperando da bicha qualquer outra sugestão.

“Você está maluca de ir à praia a essa hora procurar uma palmeira! Eu é que não quero ser estuprada![3]”, disse a bicha refutando categoricamente essa alternativa.

“Mas também não dou trezentos reais numa palmeira. Pensa aí, bicha”, dizia Lena, sem dar sinais de que desistiria facilmente do que queria.

“Ali no estacionamento do Baby-Beef tem umas; você teria coragem de ir lá arrancá-las?”, a bicha falou por falar, pois não imaginava que Lena levaria a cabo aquela idéia ilícita e, por isso mesmo, insana.

“Melhor do que dar trezentos reais ou ficar sem as palmeiras. Onde já se viu Havaí sem palmeiras?’’, disse Lena já pensando num jeito de providenciar os instrumentos necessários e na estratégia do roubo.


“Me senti em Missão Impossível, cheguei no estacionamento do Baby-beef com os faróis do carro apagados. Liguei para um funcionário da Pizza Hut e ordenei: ‘Bispo, arranje aí dois facões e traga até meu carro que está parado no estacionamento perto da loja. Venha logo, e depois eu lhe explico’”, nos relatou Lena, reproduzindo, então, em tom de suspense, o diálogo que manteve com o funcionário, o qual, ainda que indiretamente, foi obrigado a se envolver na história.


Seguindo as ordens de Lena, Bispo foi até o estacionamento com os dois facões entre os braços. Lena deu um sinal de luz para que ele visse onde estava o carro e fosse ao encontro dela. Bispo entregou rapidamente os facões para Lena, estranhando a situação. “Obrigada, Bispo, pode ir, e depois eu lhe conto o que vou fazer com esses facões, não se preocupe que não vou matar ninguém. Agora pode ir, pois não podemos chamar atenção”, disse Lena procurando tranqüilizá-lo e ao mesmo tempo dispensando Bispo. De posse dos facões, entrou no carro, onde a bicha a aguardava. Quando os dois se viram com os facões nas mãos, não conseguiram conter a crise de riso.

“Vamos logo antes que apareça alguém. Ou melhor, você vai, e eu fico no carro vigiando”, disse Lena já apressando a bicha e tentando tirar o corpo fora do serviço mais sujo.

“Mas que puta[4]! Ficar vigiando no carro... Essa é boa!”, disse a bicha indignada.

“Vai logo, bicha, não podemos ficar aqui discutindo. Vá que eu vou com você, mas fico vigiando”, disse Lena, de forma persuasiva, ou melhor, literalmente, imperativa, afinal a bicha não podia se esquecer de que era subordinada (“o” – pela condição biológica) a ela.

“Instantes depois, eu só via o matinho sacudindo. Até tentei ensaiar uns golpes com o facão, mas minha palmeira nem se abalava”, nos contou Lena. Ao ver que não teria êxito, mais uma vez ela transferiu a tarefa para a bicha, que foi quem, de fato, arrancou as duas palmeiras do estacionamento do Baby-Beef, embora Lena tivesse pedido dois facões para Bispo.

“Vocês precisavam ver a cena: a bicha carregando uma palmeira apoiada em cada ombro, sem parar de reclamar de que estava todo(a) sujo(a) de terra. Eu dizia: ‘Quieta, bicha, você quer que eles nos vejam’. Enfiamos as palmeiras no meu carro, que ficou parecendo um matagal; a jungle, minhas irmãs! Para dirigir, eu tinha de abrir espaço entre a folhagem”, Lena nos contava fazendo toda a encenação corporal (com bastante ênfase na mímica da ação de enfiar e no gesto de tirar o mato da cara).

Lena então sentiu um cheiro ruim e perguntou a bicha o que era aquilo: “Isso é terra? Esse fedor horrível é da terra?”.

“Merda, minha filha, merda, eu PI-SEI na merda. Tudo por causa dessas malditas palmeiras”, gritava a bicha irritada e com sua afetação gay característica[5].

Não me lembro se eles chegaram a devolver os facões para Bispo antes de seguirem com as palmeiras para o hotel onde seria dado o treinamento. No trajeto do carro até o salão, eles tiveram que passar pela área da piscina. “Os gringos que estavam lá não tiravam o olho das palmeiras carregadas pela bicha. E eu tentava disfarçar a vergonha”, nos disse Lena, franzindo os olhos e abrindo os dentes num sorriso sem graça, em sua representação (um tanto exagerada para dar um ar cômico ao relato) da sua cara de vergonha na ocasião.

As palmeiras roubadas do Baby-Beef passaram então a fazer parte da Hawai Palm Beach criada para o treinamento da Pizza Hut. Lena testemunhou na prática e deu uma prova concreta de que ser diferente vai muito além de dançar o ula-ula numa dinâmica de grupo. Junto com a bicha, também deu um exemplo de perfeccionismo e dedicação profissional (ainda que de forma, no mínimo, excêntrica): cometeu um crime, fez a bicha pegar no facão e pisar na merda; tudo para conseguir o cenário perfeito. Acho que o marketing da Pizza Hut deveria fazer uma pequena alteração no slogan, no intuito de torná-lo muito mais verdadeiro. Este ficaria assim: “Pizza Hut: diferente como Lena”. E eu ainda faria o seguinte adendo: que, além de louca (isto só de vez em quando), é, sem dúvida, uma pessoa extraordinária.

Salvador, 29 de maio de 2005

Cristiana Serra, irresponsável, por ter escrito esta narrativa em vez de corrigir a pilha de trabalhos dos alunos que a aguarda no armário, mas grata por ter uma amiga como Lena e poder presenteá-la com este texto, às vésperas de seu aniversário (dia 02 de junho). Esta crônica também é dedicada à bicha, numa homenagem ao Dia Internacional do Orgulho Gay, que será celebrado daqui a um mês (dia 28 de junho) e cujas comemorações já começaram desde hoje, a exemplo da Parada Gay que está acontecendo nesse exato momento em São Paulo.

[1] Embora seja politicamente incorreto, o substantivo, que é utilizado como sinônimo de homossexual, no presente texto, não tem uma conotação pejorativa e/ou preconceituosa, uma vez que é empregado como apelido autorizado pelo apelidado, o qual já se acostumou a ele, quase como se este fosse seu nome próprio.

[2] Lena e Lana parece nome de dupla sertaneja. Lana Kelly e Lena Cristiny, mais ainda. Cabe esclarecer que Kelly é mesmo o segundo nome de Lana e que lenacristiny@hotmail.com é o e-mail com que Lena foi cadastrada no MSN, por um amigo dela, maluco, diga-se de passagem, que não teve paciência de ficar fazendo outras tentativas após não poder cadastrá-la com seu nome verdadeiro, pois já existiam outras pessoas com o mesmo e-mail.

[3] Quando Lena, na mesa do Aice Sushi, lançando mão de seus dotes cênicos (não é uma atriz profissional, mas tem talento para a coisa), reproduziu a fala da bicha utilizando a entonação que certamente lhe seria própria (à bicha), eu quase engasguei com o harumaki hot holl, e as outras meninas tiveram uma crise de riso.

[4] Do mesmo modo que Lena não pode ser acusada de preconceito por usar o termo bicha como vocativo, o substantivo utilizado pela bicha para se referir à Lena, de acordo com os padrões lingüísticos gays, não pode ser considerado como um desrespeito.

[5] Tanto a irritação como a afetação foram magistralmente interpretadas por Lena. Certamente, os nossos vizinhos de mesa, no Aice Sushi, devem ter se surpreendido, ao ouvir aquela frase enunciada com tamanha veracidade, com Lena arregalando os olhos, balançando as mãos e todo o corpo, e acentuando, principalmente, o “r” de “merda”. E nós nos acabávamos de rir, e eu, com resto de gripe, além dos de riso, tinha acessos de tosse, os quais tentava conter com o guardanapo de pano.

8 de março de 2008

Cartinha para uma águia no Dia Internacional da Mulher

Como hoje é o Dia Internacional da Mulher ― não foi à toa que escolhi essa data para o lançamento do meu blog ― lembrei de um texto que escrevi um tempo atrás sob encomenda e como forma de socorrer uma amiga num momento de aperto. Embora não achasse muito correto, afinal sou muito certinha (de pai e mãe) no que se refere a esse tipo de coisa, não poderia deixar de atender ao pedido de uma das mais queridas entre minhas queridas amigas. Como professora, obviamente, recriminaria meus alunos se eles fizessem o que ela fez. Mas, numa situação como aquela, que resultava num certo conflito ético (pelo menos, para mim), temos de pesar todas as variáveis envolvidas. A amiga em questão assistiu a todas as aulas, não faz parte da galera que leva os estudos com a barriga e na malandragem; apenas estava muito sobrecarregada de trabalho, e aquela era uma avaliação de uma disciplina que não era tão crucial para a área de conhecimento na qual ela estava se especializando na pós-graduação. Fora isso, a tarefa passada pelo professor de Filosofia fugia um pouco do convencional e exigia uma certa dose de criatividade. Não que a minha amiga não tivesse esse dom, muito pelo contrário; ela só não estava em condições favoráveis para explorar seu potencial criativo naquele momento. Considerando tudo isso, não vi mal em fazer o trabalho no lugar dela, mesmo porque ajudar um amigo é uma atitude nobre, o que me deixava com a consciência tranqüila.

Sim, mas o que tudo isso tem a ver com o Dia Internacional da Mulher? Aguardem e verão. O professor de minha amiga passou um texto, provavelmente retirado do livro (ou talvez inspirado nele) “A águia e a galinha”, de Leonardo Boff, cuja história era a seguinte: uma águia foi criada por (ou com, não me lembro exatamente) galinhas. Achava que era galinha, mas descobriu que era uma águia. Mesmo assim, após a revelação de sua verdadeira identidade, ela queria continuar vivendo como uma galinha. Até o dia em que foi expulsa do galinheiro. A tarefa exigida pelo professor de Filosofia era: escrever uma carta para Áquila (minha amiga disse que esse era o nome da ave, mas eu não cheguei a ler o texto que serviu de base para a atividade), a águia, com alguns conselhos sobre como lidar com a crise pela qual ela estava passando. Segue a cartinha para Áquila, escrita por mim, na condição de ghost-writer de minha estimada amiga.

“Cara Áquila,

Embora sejamos espécies diferentes do reino animal, compreendo, perfeitamente, como você se sente, o conflito pelo qual está passando. Realmente, não é fácil experimentar uma mudança tão radical, de um dia para o outro. Os da minha espécie chamam isso de mudança de paradigma, trata-se de algo semelhante a uma revolução: ter o céu como limite, ter uma visão de amplo alcance, depois de, durante anos e anos, passar boa parte do tempo só olhando para o chão, num raio bastante limitado.

No meu mundo, nos dias de hoje, talvez a mudança seja a única constante. Mesmo assim, são muitos os que, como você, reagem com medo diante de uma realidade desconhecida, em vez de encarar, como desafio, o necessário processo de adaptação, não vislumbrando, grande parte das vezes, a abertura de novas possibilidades. E olhe que nós humanos temos uma enorme capacidade de aprendizado, ao contrário das galinhas que, ainda que quisessem ser como as águias, jamais poderiam fugir de sua natureza.

Alguns da minha espécie se olham no espelho, se sentem grandessíssimos idiotas por não usarem dez por cento de sua cabeça animal enquanto outros levam sua vidinha normalmente e se contentam com o fato de o Senhor ter lhes concedido o domingo para passear com a família no jardim zoológico e dar pipoca aos macacos. Áquila, minha cara, você tem pela frente a possibilidade de voar e conhecer novos horizontes, mas se recusa a ver isso, por mero apego aos velhos hábitos, à realidade com a qual está acostumada, só porque esta lhe parece mais cômoda.

Veja o que aconteceu com minhas semelhantes, as mulheres; podemos, inclusive, estabelecer um paralelo com a sua história. No início do século passado, as fêmeas da minha espécie eram criadas para servirem aos seus machos e cuidarem do seu ninho. Essa era a realidade que elas conheciam. No entanto, algumas delas perceberam que tinham potencial para alçar vôos maiores e passaram a se questionar: por que viver como galinhas, se podiam ser como as águias?

Mais do que viver um conflito interno como o que está sendo vivenciado por você, tais mulheres tiveram de travar um conflito muito maior. Foi difícil, mas valeu a pena: com muito custo, conquistaram posições de destaque na sociedade, garantiram seu lugar no mercado de trabalho, conseguiram sua independência financeira, a liberdade e o poder de serem senhoras do seu destino. Mais do que se defrontarem com uma realidade desconhecida, muitas delas desempenharam um papel fundamental na criação de uma nova realidade. Mais do que se adaptarem às mudanças, existiram aquelas que provocaram as mudanças. Você tem noção do que é isso?

No entanto, apesar de todas essas conquistas, há muitas mulheres que agem exatamente como você: descobriram que são águias, mas continuam vivendo como galinhas, preocupadas em manter os pintinhos debaixo das asas e baixando a crista quando o marido canta de galo.

Espero que desse exemplo você possa tirar algumas lições, do mesmo modo que conhecer a sua história me serviu de estímulo para esta reflexão. Como conselho derradeiro, só me resta dizer: levante a cabeça, mire o horizonte que tem pela frente e decole. Não há razão para medo, você está totalmente equipada para voar. Devo reconhecer que eu também, ainda que num sentido metafórico.”

Parabéns para todas as mulheres, principalmente aquelas que têm garra para alçar vôos cada vez mais altos. Às outras que ainda não chegaram nesse estágio, recomendo que brindem o Dia Internacional da Mulher com uma taça de Redbull. Afinal, Redbull TE DÁ ASAS!!!!!!!

Pequenas porções de diversão

Aqueles que me conhecem de perto sabem que eu não sou assim tão normal quanto aparento, até porque de perto ninguém é normal mesmo. Entre minhas idiossincrasias, pode-se apontar o fato de ser do tipo “baiana de todos os santos”: no dia 02 de fevereiro, jogo flores para Iemanjá; no dia 19 de abril, faço a louvação a Santo Expedito; no dia 13 de junho, acendo uma vela para Santo Antônio; na última sexta-feira do ano, vou ao Bonfim, e por aí vai.

Que eu saiba os santos não têm programa de fidelidade nem exigem regime de dedicação exclusiva. Dessa forma, posso dizer que minha devoção tem como princípio a lógica tribalista do “eu sou de ninguém, eu sou de todo mundo, e todo mundo me quer bem”. E acho que eles me querem bem de verdade, pois não tenho do que me queixar. Até quando as coisas não saem como o esperado, se os contratempos forem vistos com o filtro do humor, ainda assim é possível extrair boas histórias para contar e depois se divertir com elas.

Foi por isso que comecei a escrever e a transformar alguns episódios da minha vida em crônicas. Uma vez iniciado esse processo, acredito que isso mudou a percepção de minha existência: esta se tornou mais significativa na medida em que passei a considerar algumas experiências como dignas de registro.

Se sempre tive claro o porquê de escrever tais histórias (porque estava a fim, porque isso me dava prazer), o mesmo não acontecia quando me perguntava para quem e para quê. Em princípio, tudo parecia muito bem resolvido: meu público alvo seria eu mesma (inclusive, no futuro) e, muito provavelmente, os amigos que vivenciaram comigo os casos por mim narrados.

Para quê? Num primeiro momento, para que a leitura coletiva, normalmente realizada após a redação dos textos, se transformasse em evento e pretexto para reunir a galera; para que as recordações de fatos engraçados e insólitos pudessem ser facilmente recuperadas nos arquivos da memória; e, sobretudo, para que esses relatos fossem uma fonte de boas risadas. Considerando que rir faz bem para pele, retarda o aparecimento de rugas e previne contra doenças cardíacas, só isso já seria mais do que uma razão suficiente.

Quando escrevo, costumo me projetar no futuro e me imagino velhinha, dando gargalhadas (muito provavelmente, bem menos estrondosas do que as de hoje), sozinha ou com meus companheiros de aventuras (e desventuras), tão velhinhos quanto eu, lembrando do que aprontamos na juventude e de outros casos engraçados que ouvi por aí. Esse, com certeza, é um excelente motivo e, sem dúvida, um ótimo remédio antimonotonia, indicado como medida preventiva para evitar a depressão senil.

Meus amigos, primeiros leitores das minhas crônicas, também foram os primeiros a me incentivar a fazer alguma coisa com elas. Diante desses estímulos, quando pensava na possibilidade de tornar públicos os textos que escrevia, vinham novamente as questões básicas da comunicação: para quem e para quê. Como jornalista, sei que um dos principais (na verdade, deveria ser o principal) critérios de noticiabilidade é o interesse público, além do igualmente importante (na visão comercial, é o que acaba pesando mais) interesse do público. E continuava me perguntando: “Será que outras pessoas distantes do meu convívio teriam interesse em ler esses meus relatos? A troco de quê?”.

Agora, pensando melhor, diria que talvez elas pudessem ter como recompensa alguma diversão, o que me parece uma contrapartida bem razoável. Então, caros leitores desse meu despretensioso blog, é isso que vocês podem encontrar por essas postagens (Não é assim que se diz nos blogs. Êta, bastaria um “a”, num vacilo de digitação, e teria escrito “pastagens”. Sim, e daí? Soaria estranho, mas algum maluco certamente atribuiria algum sentido. Qual? Deus sabe. Outro detalhe, sem a menor relevância, é que essa é a forma aportuguesada. Fala-se, normalmente, em “post”, que, em inglês, pode significar um monte de coisas, inclusive poste). Fechado esse enorme e despropositado parêntese, devo dizer que esse será, portanto, meu principal tema e, de certa forma, o que me impulsionou a produzir esse blog: compartilhar, com os leitores e passantes de olho dessas páginas eletrônicas, algumas “pequenas porções de diversão”, como é anunciado no nome que dei a ele. Por falar nisso, também é bom dizer que se trata de quase um plágio das “pequenas porções de ilusão” da música “Maior abandonado” de Cazuza. Desejo que, como no refrão criado pelo meu ídolo, minhas (tanto no sentido de que “eu vivi” como no de que “ouvi de alguém e resolvi contar”) histórias sinceras (que estão longe de ser mentira) lhes interessem, lhes interessem...

Aviso logo que aqui vocês não vão encontrar reflexões profundas sobre a natureza humana (ou sobre qualquer outro tema); muito menos, algo que desafie a erudição. Se é isso que procuram, melhor usar a ferramenta de busca e ir atrás de outro blog para ler. Meu único compromisso será o de retratar, prin-ci-pal-men-te, com todas as sílabas e letras, os momentos de pura falta de compromisso, fora o de ser feliz, que a vida nos reserva se soubermos aproveitá-la. Aliás, também é bom deixar claro que nesse espaço não terei compromissos com absolutamente nada, mesmo porque já os tenho em excesso no meu dia a dia. O que isso quer dizer exatamente? Quer dizer que: passarei dias sem dar o menor sinal de escrita; que postarei (verbo postar no futuro do presente do modo indicativo. É curioso esse vocabulário da “blogosfera”, termo que os comunicólogos gostam de usar) textos que escrevi num passado recente (quando fizer isso, é provável que faça uma breve contextualização do momento em que foi escrito); que postarei (ói ele aqui de novo, o tal do verbinho) textos longos, mesmo sabendo que eles são totalmente inadequados na Internet, principalmente quando se usa o blog como suporte (quando fizer isso, é provável, que seja obrigada a usar o método do “esquartejamento”, melhor dizendo ― já que “esquartejamento” é feio ―, o método do fracionamento, quando as porções de diversão forem, digamos assim, bem servidas).

Sobre esse último recém-fechado parêntese, abrirei mais um, sem contar esse aqui (se acostumem com a confusão mental, porque sou chegada num parêntese, isto é, nuns parênteses, afinal há o que abre e o outro que fecha): lembram daquela música de Marina da abertura de “Roda de Fogo” (quem não lembrar da novela, tudo bem, eu tinha dez anos quando ela foi ao ar na Globo, mas a música acho que devem conhecer, pois ainda toca, pelo menos de caju em caju, em algumas emissoras de rádio)? “Pra começar, quem vai colar, os tais caquinhos...” Pois é, os tais caquinhos dos meus nem tão velhos textos, vocês mesmos terão de colar (mas a fragmentação é sintoma da pós-modernidade, esse momento que dizem que vivemos agora. Então, é provável ― já escrevi essa palavra, tanto na forma de adjetivo como de advérbio, mais de cinco vezes, mas não se trata de pobreza de repertório lexical, a questão é que tudo é especulação minha, portanto, a repetição se faz necessária ­­― que vocês nem encarem como um problema). Já viram que sou a rainha das idéias intercaladas. Se o pensamento é assim, a escrita tem de dar um jeito de acompanhá-lo. Quem quiser que me siga.

Gente jovem, por espírito ou data de nascimento, deve obter algum prazer na leitura dos textos que serão aqui publicados (ainda dá para usar esse verbo mais tradicional, mesmo no contexto dos blogs, não é mesmo?). Para isso, eu espero poder contar com as visitas de vocês (“não me deixem só, tenho desejos maiores”), até para ter mais um alento para escrever, além, é claro, da benção de todos os santos.

P.S. (leia-se “Para os Santos”): Senhor do Bonfim, eu sei que Gil já pediu, mas faça também esse favor para mim, chama o pessoal e manda descer a galera toda. Santo Expedito, relaxe aí, que não é assim tão urgente, mas, se puder dar uma forcinha, eu agradeço. Santo Antônio, nesse caso, o senhor está liberado; nem perca seu tempo tentando conseguir apreciadores para esse meu blog, se concentre na sua tarefa de me arranjar um marido bom (no sentido do caráter e no outro também), bonito (ou bonitinho, pelo menos) e que me faça feliz (Santo Expedito, se quiser se coligar com seu colega, fique à vontade!). Odoya, minha mãe, não esqueça de que um dia a senhora mandou o pai de santo me dizer: “o melhor está por vir”. Se ainda vem mais, que venha!