14 de março de 2008

O roubo das palmeiras

Esse texto foi escrito nos últimos dias de maio de 2005. Lena não trabalha mais na Pizza Hut, mas continua sendo uma pessoa diferente, isto é, fora do comum, o que quer dizer o mesmo que extraordinária, e, por isso, especial. Por tudo isso e muito mais, é minha grandessíssima amiga (como não sou a favor de ranking de amizade, é melhor dizer assim; se fizesse um top ten, ela certamente estaria no alto da lista). Foi ela quem me apresentou a bicha, que também é muy querida, e me contou a história abaixo. Por mais fiel ao relato de Lena, este texto não terá a mesma graça do caso contado pessoalmente por ela, que realmente tem todo um talento cênico para a arte da narrativa oral e sabe entreter qualquer platéia. Mas espero que as limitações próprias da palavra escrita (das minhas, pelo menos) sejam superadas pela comicidade dos fatos. Vamos ao texto, na forma como ele foi originalmente escrito.



Lena e a Bicha em: o roubo das palmeiras




Eu nem deveria escrever sobre isso, uma vez que o caso que aqui será narrado constitui um ato ilícito, e, o que é pior, este foi praticado por uma amiga minha, tendo como cúmplice (na verdade, a palavra mais certa seria comparsa, se não pesasse a hierarquia da condição profissional) uma bicha[1] que trabalhava para ela. Mas trata-se de uma história muito engraçada para ficar armazenada, e correndo o risco de se perder, nos arquivos da memória.

A amiga em questão é Lena Rivas, gerente de marketing da Pizza Hut, que, na ocasião, estava incumbida de preparar um treinamento para os funcionários. O slogan “Pizza Hut: diferente como você” sintetizava a idéia que seria então explorada pelo marketing; e o primeiro passo era fazer com que os funcionários da empresa a internalizassem, para que pudessem agir de forma que os clientes realmente se sentissem pessoas diferentes, isto é, pessoas fora do comum, o que quer dizer o mesmo que extraordinárias, e, por isso, especiais. Tendo em vista esta proposta, Lena precisava cuidar da produção de um treinamento que fosse algo original ou, pelo menos, que fugisse do habitual. Mas é preciso ressaltar que a única coisa realmente inusitada foi o que ela fez para conseguir um elemento (dois, para ser mais exata) que, segundo ela, não poderia faltar na decoração do local onde ocorreria o evento.

Não sei o que motivou a escolha, só sei que a idéia não partiu de Lena, mas “Havaí” era o tema que nortearia a concepção do cenário e das dinâmicas que seriam realizadas no treinamento. Soube que uma delas, essa sim concebida por Lena, foi colocar os funcionários para seguir os passos das coreografias que eram feitas na pista de dança do Café Cancun, boate da qual a minha amiga já foi freqüentadora assídua. Ao som da mesma seleção musical feita pelo DJ do Cancun, Lena pôs os funcionários a dançar, entre outras músicas, uma cujo refrão diz “Follow the leader, leader...”. A líder, animadora e coreógrafa, obviamente, foi ela mesma, que rebolava, subia e descia, ia para frente e para trás, para um lado e para o outro, acompanhando as instruções cantadas na música (“arriba”, “abajo”, “derecha”, “izquierda”) e repassando-as para os que a seguiam na sua performance. Além de descontrair a galera, aquilo trazia a seguinte mensagem, que deveria ser incorporada como lição do treinamento: ou seja, era uma demonstração de que, se uma pessoa tão comportada (Deus está vendo!) como a gerente de marketing da Pizza Hut podia fazer aquilo (leia-se pagar aquele mico), todos poderiam assumir atitudes diferentes, conforme o novo lema da empresa, criado pelo setor do qual Lena era integrante.

A supracitada dinâmica liderada por Lena já foi uma tarefa da qual ela ficou encarregada durante o evento; antes disso, coube a ela fazer toda a produção para decorar o ambiente de acordo com a temática. Para tanto, Lena contratou os serviços de Eduardo, que é chamado por ela, e assim também o será chamado nesta narrativa, de “a bicha”. A bicha já foi funcionário do setor de festas de aniversário da Pizza Hut, em que era responsável pela decoração; por seu carisma e talento, subiu de posto, mas foi cortado do quadro da empresa quando esta teve de fazer uma redução de custos; e hoje presta serviços esporádicos, de forma terceirizada, principalmente, em eventos como o tal treinamento sobre o qual se está falando.

Segundo os comentários de Lena, a bicha é um mestre em decoração. E aqui cabe um nem tão breve parêntese antes de narrar o fato principal de toda essa história, inclusive para explicar como esta veio à tona em uma conversa no Aice Sushi. Lena, que já conhecia as habilidades artísticas da bicha, cuja criatividade revelava-se na ornamentação das festas de aniversário realizadas na Pizza Hut, não só a (ou “o”, já que biologicamente é homem) ajudou a alcançar um cargo melhor na empresa, como também costumava requisitar seus serviços nas festinhas promovidas no “albergue”, como era apelidado o apartamento dela e de Susana, nos períodos em que este estava desocupado, isto é, sem inquilinos.

O papo sobre “a bicha”, do qual emergiu a tal história da época do treinamento dos funcionários, começou durante uma discussão sobre qual poderia ser o tema da decoração da festa de aniversário que Lena talvez faria, no “albergue”, para comemorar seus 31 anos. Estávamos conversando, em uma mesa do Aice Sushi, eu, minha irmã Marília, a única que tenho, Lena, e Carla e Lana, que também são irmãs e são amigas de Lena, e hoje, minhas também (isso é que eu chamo de contextualização!). Ao longo da conversa, Lena, Lana e Carla lembravam e contavam para mim e Marília como eram as decorações e quais foram os temas das festas anteriores, que aconteceram numa época em que elas já eram amigas, mas eu, muito menos Marília, não as conhecia.

Houve uma à fantasia; outra que foi uma festa dark, para a qual a bicha comprou uma massa especial com que fez teias de aranha para serem espalhadas por todos os cantos, além de enfeitar a sala com balões pretos e roxos; e, em todas elas, independentemente da temática, eram colocadas luzes vermelhas, de modo que, pela iluminação, dava perfeitamente para identificar de onde vinha o barulho que ecoava por todo o quarteirão. Lena comentou que, quando o videokê era moda, para desespero dos vizinhos, ela e seus convidados alugavam o aparelho e, ao final ou no início de cada música, ainda tinham a cara de pau de dizer: “Eu queria agradecer, especialmente, ao vizinho do 1501, pois sem a boa vontade dele não seria possível fazer essa festa”; “Oh, porteiro, essa vai, especialmente, para você e para toda a galera da rua que está nos ouvindo”. Ela também lembrou que uma amiga uma vez levou uma caixa com gelo seco, mas este, por falta da infra-estrutura apropriada, não teve o efeito desejado, uma vez que tinha de ser colocado numa bacia bem no meio da sala (pois não havia ninguém que se dispusesse a sair, com a bacia na mão, rodando pelo apartamento) e evaporava em pouco tempo.

“Você lembra de um aniversário seu que tinha um bolo de arco-íris? Depois eu fiquei sabendo que o arco-íris é o símbolo dos homossexuais, e a bicha, descarada, nem para dizer. Você sabia disso?”, disse Lana, insinuando que a bicha teria se aproveitado da situação e de uma suposta ignorância de Lena, para difundir um emblema do mundo gay.

“Eu sabia sim, mas não me importei, porque achei o colorido bonito”, disse Lena, deixando claro que não via nenhum mal naquilo.

“E se achassem que você era lésbica?”, ainda insistiu Lana.

“E eu estou me importando com o que vão achar?”, respondeu Lena.

“Ah, eu me importaria. Imagine, acharem que eu sou lésbica por causa de um bolo de gay... Eu não ia gostar nada disso!”, disse Lana antes de Lena[2] introduzir um novo tema na conversa.

Finalizado este diálogo, Lena começou a relatar como foi feita a decoração do referido (já várias vezes) treinamento para os funcionários da Pizza Hut, cujo tema (também já citado) era Havaí: “A bicha é um perigo. Ela chega no Le Biscuit e diz: ‘eu quero esse, esse, e mais esse, todos esses’. Para compor o cenário do Havaí, espalhou areia por todo o salão. Pensem no trabalho que deu para limpar no dia seguinte! Mas o pior de tudo foi arranjar as palmeiras”. Foi aí que Lena deu início à narrativa da história que me motivou a escrever esse texto, a qual, finalmente, será aqui contada, logo em seguida. Agora sim começa o que poderia ser um conto, e não uma crônica, com o título de “O roubo das palmeiras”.

Lena conseguiu até uma prancha de surf com seu vizinho, para integrar o cenário do salão onde seria dado o treinamento. Segundo ela, a decoração da bicha estava impecável, mas faltava alguma coisa para criar a atmosfera do Havaí. Chegaram à conclusão de que precisavam de duas palmeiras, já que, obviamente não apenas pelas dimensões do espaço, seria impossível colocar dois coqueiros no local. Como as que encontraram à venda no mercado eram muito caras, Lena desistiu de providenciar palmeiras de verdade e mandou a bicha dar um jeito, nem que tivesse de fazer de papel crepom.

Ao final do dia, ao ver o salão todo arrumado, Lena não se conformava com a ausência das palmeiras: “Elas ficariam tão belas, uma em cada canto da parede...”

“Vai dar quinhentos reais numa palmeira, por acaso???!!! Eu preciso ir para casa, viu?”, disse a bicha numa tentativa de fazer com que Lena desse o serviço por encerrado.

Iniciou-se um impasse, uma vez que Lena não queria abrir mão daquele elemento cenográfico e cobrava uma solução por parte da bicha.

“Trezentos reais numa palmeira não tem condição. E agora o que fazemos? Será que a gente encontra alguma palmeira para o lado da praia?”, dizia Lena esperando da bicha qualquer outra sugestão.

“Você está maluca de ir à praia a essa hora procurar uma palmeira! Eu é que não quero ser estuprada![3]”, disse a bicha refutando categoricamente essa alternativa.

“Mas também não dou trezentos reais numa palmeira. Pensa aí, bicha”, dizia Lena, sem dar sinais de que desistiria facilmente do que queria.

“Ali no estacionamento do Baby-Beef tem umas; você teria coragem de ir lá arrancá-las?”, a bicha falou por falar, pois não imaginava que Lena levaria a cabo aquela idéia ilícita e, por isso mesmo, insana.

“Melhor do que dar trezentos reais ou ficar sem as palmeiras. Onde já se viu Havaí sem palmeiras?’’, disse Lena já pensando num jeito de providenciar os instrumentos necessários e na estratégia do roubo.


“Me senti em Missão Impossível, cheguei no estacionamento do Baby-beef com os faróis do carro apagados. Liguei para um funcionário da Pizza Hut e ordenei: ‘Bispo, arranje aí dois facões e traga até meu carro que está parado no estacionamento perto da loja. Venha logo, e depois eu lhe explico’”, nos relatou Lena, reproduzindo, então, em tom de suspense, o diálogo que manteve com o funcionário, o qual, ainda que indiretamente, foi obrigado a se envolver na história.


Seguindo as ordens de Lena, Bispo foi até o estacionamento com os dois facões entre os braços. Lena deu um sinal de luz para que ele visse onde estava o carro e fosse ao encontro dela. Bispo entregou rapidamente os facões para Lena, estranhando a situação. “Obrigada, Bispo, pode ir, e depois eu lhe conto o que vou fazer com esses facões, não se preocupe que não vou matar ninguém. Agora pode ir, pois não podemos chamar atenção”, disse Lena procurando tranqüilizá-lo e ao mesmo tempo dispensando Bispo. De posse dos facões, entrou no carro, onde a bicha a aguardava. Quando os dois se viram com os facões nas mãos, não conseguiram conter a crise de riso.

“Vamos logo antes que apareça alguém. Ou melhor, você vai, e eu fico no carro vigiando”, disse Lena já apressando a bicha e tentando tirar o corpo fora do serviço mais sujo.

“Mas que puta[4]! Ficar vigiando no carro... Essa é boa!”, disse a bicha indignada.

“Vai logo, bicha, não podemos ficar aqui discutindo. Vá que eu vou com você, mas fico vigiando”, disse Lena, de forma persuasiva, ou melhor, literalmente, imperativa, afinal a bicha não podia se esquecer de que era subordinada (“o” – pela condição biológica) a ela.

“Instantes depois, eu só via o matinho sacudindo. Até tentei ensaiar uns golpes com o facão, mas minha palmeira nem se abalava”, nos contou Lena. Ao ver que não teria êxito, mais uma vez ela transferiu a tarefa para a bicha, que foi quem, de fato, arrancou as duas palmeiras do estacionamento do Baby-Beef, embora Lena tivesse pedido dois facões para Bispo.

“Vocês precisavam ver a cena: a bicha carregando uma palmeira apoiada em cada ombro, sem parar de reclamar de que estava todo(a) sujo(a) de terra. Eu dizia: ‘Quieta, bicha, você quer que eles nos vejam’. Enfiamos as palmeiras no meu carro, que ficou parecendo um matagal; a jungle, minhas irmãs! Para dirigir, eu tinha de abrir espaço entre a folhagem”, Lena nos contava fazendo toda a encenação corporal (com bastante ênfase na mímica da ação de enfiar e no gesto de tirar o mato da cara).

Lena então sentiu um cheiro ruim e perguntou a bicha o que era aquilo: “Isso é terra? Esse fedor horrível é da terra?”.

“Merda, minha filha, merda, eu PI-SEI na merda. Tudo por causa dessas malditas palmeiras”, gritava a bicha irritada e com sua afetação gay característica[5].

Não me lembro se eles chegaram a devolver os facões para Bispo antes de seguirem com as palmeiras para o hotel onde seria dado o treinamento. No trajeto do carro até o salão, eles tiveram que passar pela área da piscina. “Os gringos que estavam lá não tiravam o olho das palmeiras carregadas pela bicha. E eu tentava disfarçar a vergonha”, nos disse Lena, franzindo os olhos e abrindo os dentes num sorriso sem graça, em sua representação (um tanto exagerada para dar um ar cômico ao relato) da sua cara de vergonha na ocasião.

As palmeiras roubadas do Baby-Beef passaram então a fazer parte da Hawai Palm Beach criada para o treinamento da Pizza Hut. Lena testemunhou na prática e deu uma prova concreta de que ser diferente vai muito além de dançar o ula-ula numa dinâmica de grupo. Junto com a bicha, também deu um exemplo de perfeccionismo e dedicação profissional (ainda que de forma, no mínimo, excêntrica): cometeu um crime, fez a bicha pegar no facão e pisar na merda; tudo para conseguir o cenário perfeito. Acho que o marketing da Pizza Hut deveria fazer uma pequena alteração no slogan, no intuito de torná-lo muito mais verdadeiro. Este ficaria assim: “Pizza Hut: diferente como Lena”. E eu ainda faria o seguinte adendo: que, além de louca (isto só de vez em quando), é, sem dúvida, uma pessoa extraordinária.

Salvador, 29 de maio de 2005

Cristiana Serra, irresponsável, por ter escrito esta narrativa em vez de corrigir a pilha de trabalhos dos alunos que a aguarda no armário, mas grata por ter uma amiga como Lena e poder presenteá-la com este texto, às vésperas de seu aniversário (dia 02 de junho). Esta crônica também é dedicada à bicha, numa homenagem ao Dia Internacional do Orgulho Gay, que será celebrado daqui a um mês (dia 28 de junho) e cujas comemorações já começaram desde hoje, a exemplo da Parada Gay que está acontecendo nesse exato momento em São Paulo.

[1] Embora seja politicamente incorreto, o substantivo, que é utilizado como sinônimo de homossexual, no presente texto, não tem uma conotação pejorativa e/ou preconceituosa, uma vez que é empregado como apelido autorizado pelo apelidado, o qual já se acostumou a ele, quase como se este fosse seu nome próprio.

[2] Lena e Lana parece nome de dupla sertaneja. Lana Kelly e Lena Cristiny, mais ainda. Cabe esclarecer que Kelly é mesmo o segundo nome de Lana e que lenacristiny@hotmail.com é o e-mail com que Lena foi cadastrada no MSN, por um amigo dela, maluco, diga-se de passagem, que não teve paciência de ficar fazendo outras tentativas após não poder cadastrá-la com seu nome verdadeiro, pois já existiam outras pessoas com o mesmo e-mail.

[3] Quando Lena, na mesa do Aice Sushi, lançando mão de seus dotes cênicos (não é uma atriz profissional, mas tem talento para a coisa), reproduziu a fala da bicha utilizando a entonação que certamente lhe seria própria (à bicha), eu quase engasguei com o harumaki hot holl, e as outras meninas tiveram uma crise de riso.

[4] Do mesmo modo que Lena não pode ser acusada de preconceito por usar o termo bicha como vocativo, o substantivo utilizado pela bicha para se referir à Lena, de acordo com os padrões lingüísticos gays, não pode ser considerado como um desrespeito.

[5] Tanto a irritação como a afetação foram magistralmente interpretadas por Lena. Certamente, os nossos vizinhos de mesa, no Aice Sushi, devem ter se surpreendido, ao ouvir aquela frase enunciada com tamanha veracidade, com Lena arregalando os olhos, balançando as mãos e todo o corpo, e acentuando, principalmente, o “r” de “merda”. E nós nos acabávamos de rir, e eu, com resto de gripe, além dos de riso, tinha acessos de tosse, os quais tentava conter com o guardanapo de pano.

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