9 de julho de 2008

"50 dias em 5": histórias do Planalto Central

O bordão "50 anos em 5" foi o mote da campanha que levou Juscelino Kubitschek a assumir a Presidência da República, em 31 de janeiro de 1956. O conhecido slogan se tornou o lema da política desenvolvimentista que marcou o governo JK e do chamado Plano de Metas, cuja meta-síntese era a construção da nova capital federal.

Se eu tivesse de criar um Plano de Metas como parte da minha estratégia de desenvolvimento pessoal, certamente, viajar, conhecer pessoas e fazer novas amizades estariam entre os objetivos permanentes a serem cumpridos ao longo dos próximos 50 anos. Também poderia tomar de empréstimo o slogan de Juscelino para definir, na devida proporção, a viagem que fiz a Brasília, no dia do meu aniversário. Pela quantidade de experiências que vivi, pela diversidade de histórias que ouvi e pela qualidade das pessoas que conheci, posso, sem dúvida, afirmar que foram "50 dias em 5" de pura diversão.

Pela mobilização de energia em agitos (leia-se "reggaes", no baianês, e "baladas", no candanguês), dá para dizer que foi o equivalente a um carnaval fora de época, afinal, saí, de sexta à noite à madrugada de terça, quase sempre voltando para casa (leia-se apartamento de Naiana ou de André, amigo de longa data e hospedeiro de Lena) na alvorada, para usar uma palavra bastante utilizada por JK.













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O seguinte texto ocupa a parede dourada do hall de entrada do Palácio da Alvorada:




“Deste Planalto Central, desta solidão que em breve se transformará em cérebro das mais altas decisões nacionais, lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã do meu país e antevejo esta alvorada, com fé inquebrantável e uma confiança sem limites no seu grande destino”.
Juscelino Kubitschek, 02/10/56


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Com uma fé inquebrantável de que me divertiria muito, meu cérebro tomou a mais alta decisão de comemorar meus 32 anos, no planalto central, junto com duas grandes amigas e outros amigos que hoje residem na capital federal, e mais alguns que ainda iria conhecer. Lena iria a Brasília fazer um concurso público, no dia 06 de julho, e Naiana, que foi minha colega de sala no Colégio São Paulo, mora lá há 7 anos e, assim como eu, faz aniversário no dia 4 de julho (também nasceu no mesmo ano, e celebramos juntas os nossos 30 anos, numa comemoração inesquecível, durante a Copa do Mundo, na Alemanha).

A bem da verdade e para ser mais fiel à realidade, Lena e Naiana, tendo em vista os fatos mencionados, meses antes, resolveram, ao se encontrarem numa pizzaria na primeira capital do Brasil, que esse seria o meu destino; eu apenas ratifiquei a decisão.

Mais uma vez, em grande estilo, comemorei meu aniversário com Naiana, sob a promessa de que isso tornar-se-á (curtiram a mesóclise?), a partir de agora, uma tradição e também pude conhecer, desta vez com mais calma, as obras de Niemmeyer, estas patrimônio da humanidade. Mas o que acho mais bacana de fazer uma viagem quando se conhece gente que mora no lugar é a possibilidade de se sentir "local", como diz minha amiga Lena.

Além dos programas turísticos obrigatórios, fiz uma série de coisas que, normalmente, só um candango ou alguém que mora em Brasília há mais tempo faria: não paguei o suco e o crepe que comi no dia do meu aniversário, na creperia mais badalada de Brasília (isso porque Naiana sabia desta promoção exclusiva para os aniversariantes); malhei com Lena (fizemos um percurso de 6km), no Parque da Cidade; fui para uma festinha fechada (chamada "Mistura Fina" e promovida pelo DJ Chico) que só acontece quatro vezes ao ano, com Jaime e seus amigos, os quais, gentilmente, colocaram nossos nomes na lista; no dia seguinte à festa, fui com Naiana e um dos novos amigos para um churrasco, numa casa de madeira, em construção, no alto de um morro, num condomínio que fica a uma hora do centro de Brasília, e de onde se pode apreciar uma paisagem belíssima do cerrado; e, em plena segunda-feira, enfretamos uma fila, por quase duas horas, para conseguir entrar no Calaf, bar que bomba em Brasília, especialmente nesse dia, para comemorar com a galera o aniversário daquele novo amigo que nos levou para o churrasco.

Fora todos esses programas, entre as várias experiências vividas na capital federal, não poderia deixar de falar sobre os personagens muito interessantes que conheci. Aliás, a meta-síntese desse texto é justamente fazer uma breve apresentação de cada um deles, ressaltando seus traços de personalidade e idiossincrasias, assim como, contar algumas histórias das quais foram protagonistas.

Breu e The Strongest

Na saída do Boca Negra, onde comemoramos o nosso aniversário (meu e de Naiana), encontramos a dupla Breu e The Strongest. Eu estava com uma de minhas amigas na porta, aguardando a outra pagar a conta, para que pudéssemos providenciar um taxi para voltar para casa, pois, em função da Lei Seca, não tínhamos ido para lá de carro. Quando fico bêbada, um dos sintomas, fora o de abrir um sorriso constante mostrando todos os dentes, é ficar repetindo várias vezes a mesma coisa, como o papagaio da EBEC (escola de inglês que tem a ave como símbolo e a repetição como metodologia pedagógica). E eu dizia "Minha conta deu R$ 93,00". Again: "Quanto foi mesmo a entrada? 10 R$? Porque eu paguei R$93,00". Once more: "Devo ter tomado no máximo 3 ou 4 Margaritas, sempre acompanhadas de água. Será que foi isso mesmo? R$ 93? Estou achando muito". Once again: "Lena, a sua deu quanto? A minha deu R$ 93,00. Quebrança". Ou seja, todas as pessoas que estavam na frente do bar sabiam o valor da minha conta no Boca Negra.

Como bêbado faz o que dá na telha, nesse intervalo de tempo, tirei as sandálias, pois meus pés estavam doendo. Foi aí que The Strongest se aproximou e puxou conversa, meio que se engraçando para o lado da amiga que estava comigo. Quando vi a camisa dele, comecei a perturbação. Pressionava o indicador, contra o peito dele, em cima de cada letra, lendo o que estava escrito como se fosse criança recém-alfabetizada: "The-S-troon-g-est. Opaí ó, se achando o fortão". Obviamente, como o papagaio tinha se apossado do meu espírito, fiz isso algumas vezes; não sei como não apanhei. O rapaz não era propriamente O Fortão, mas acabaria em dois tempos com a minha raça.

Mas o bichinho era bonzinho e estava todo meiguice com minha amiga. Tanto é que nos ofereceu carona, quando nossa outra amiga chegou. Não tenho certeza se Breu já estava conosco durante esse tempo todo; só tenho a lembrança da pessoa e do apelido dele, quando já estávamos todos no carro. As meninas, que estavam um pouco melhores do que eu, acharam que os rapazes eram confiáveis e aceitaram (pode ser até que elas mesmas tenham pedido; disso não tenho certeza também) a carona.

A uma certa altura, Breu nos informou que teria de acordar cedo, para levar a filha ao zoológico, e foi aí que eu encarnei no coitado, com a história dos macacos e leões: "Breu... É Breu mesmo seu apelido, né? Por que, hein? Quer dizer, não precisa dizer, porque isso não vem ao caso. O caso é o seguinte. Se você for ao zoológico com sua filha, não leve a menina para ver os leões. Os leões são bichos muito arrogantes, se acham os reis. Você tem de levar sua filha para brincar com os macacos que são animais mais evoluídos, mais próximos do homem. Os macacos são divertidos, têm senso de humor. Leve a menina para brincar com eles".

Fiquei repetindo essa ladainha, com a voz embolada e acentuando os plurais, pronunciando todos os "s", com som de "x", "oxxxx macacoxxxxx e oxxxx leõexxxxx", até apagar completamente, usando uma sacola vermelha onde estavam os presentes de Naiana, como travesseiro. Só acordei (para ser mais exata, fui acordada, após algumas tentativas sem sucesso) na porta do prédio de Naiana.

Estava tão desnorteada que nem conseguia calçar minhas lindas sandálias vermelhas. Me senti a Cinderela, quando The Strongest, que, a partir desse momento, eu deveria passar a chamar de The Kindest, se ajoelhou e colocou as sandálias nos meus pés. Fez questão de me levar até o elevador e ainda perguntou se queríamos que ele subisse para nos deixar na porta do apartamento. Agradeci, disse que ele era um amor de pessoa, mas que não havia necessidade, porque eu já estava bem. Ele só foi embora, porque Naiana estava comigo e em melhores condições do que eu, e disse a ele que não precisava se preocupar.

Quem ficou preocupada, no dia seguinte, foi Lena, que tinha ficado antes, no apartamento de André, onde estava hospedada. Eu e Naiana dormimos até 15h e não ouvimos as ligações dela. Lena ficou tão agoniada que ligou para The Strongest, para se certificar de que ele nos tinha deixado em casa conforme havia combinado. O rapaz, tão solícito e atencioso, a tranqüilizou, relatando minuciosamente toda história, desde o momento que me calçou, até o fim do percurso ao elevador.

Pegador, erroneamente conhecido como Tadinho de Minas

Pegador é mineiro de nascença e o único dos personagens que já era meu conhecido, pois morou um tempo em Salvador, antes de ir para Brasília. No caso dele especificamente, posso afirmar, com toda convicção, que a primeira impressão não foi a que ficou. Nas vezes em que estive com ele, em Salvador, devo confessar que o achei metido a Toddy (gíria bizarra e anacrônica usada por meu pai e minhas tias), para não dizer boçal, que é uma palavra muito forte.

Não sei se foi a mudança de ares ou o fato de que as aparências realmente enganam; o certo é que, em Brasília, pude constatar o quanto ele é (ou se tornou, quem sabe) um cara agradável, sociável, admirável, adorável e mais não sei quantos adjetivos com sufixo "ável", além de gente boa, finíssima, da melhor estirpe, e digo isso sem receio de ser criticada pela repetição e redundância.

De Tadinho ("Tadim", como se fala em Minas), Pegador não tem nada: é inteligente, tem um bom emprego e está saindo com cinco mulheres ao mesmo tempo. Não foi para o nosso aniversário, pois estava numa missão importante (leia-se foi "dar uma") com uma delas, que, segundo ele, é gata, muito gata.

Engenheiro ótico

Gatinho mesmo era o engenheiro ótico que Pegador nos apresentou. Até então, nunca tinha ouvido falar dessa especialização, cujas principais atividades ele paciente e didaticamente nos explicou, após eu ter perguntado o que faz, na prática (meio na linha das informações que vêm no "Guia do Estudante"), um profissional dessa área. O rapaz morou nos States e deve ter sido lá que aprendeu a profissão por mim desconhecida. Simpatizei mais ainda com Engenheiro Ótico, quando começou a falar de uma peça adaptada do livro "Conversando com anjos", cujos diálogos fizeram com que ele passasse a acreditar em Deus. Falar de teatro e literatura, a meu ver, é um elemento sedutor num homem (ainda mais sendo engenheiro).

Fora isso, o mocinho, diferentemente dos amigos, fazia o tipo reservado, o que também contribuía para aumentar sua cotação no mercado. Pena que ele não me deu mole e preferiu se render aos encantos da Gêmea Má (como Raquel e Taís), assim apelidada, somente pelo fato de que eu, na condição de autora da história das irmãs gêmeas, não poderia atribuir a mim outro papel que não fosse o da Gêmea Boa (como Ruth e Paula).

Por sinal, a Gêmea Má teve uma atitude eticamente irrepreensível e, por mais que o desejasse, só cedeu às investidas do Engenheiro Ótico, depois que eu dei sinal de que o caminho estava liberado. Apesar do meu interesse inicial, uma vez que ela era "A Favorita", como o título da atual novela da Globo, seria muito justo que ficasse com aquele que havia conquistado, ainda mais depois de ter demonstrado ser uma amiga tão fiel.

Joca, o peguete da Smurfete

Estou na dúvida quanto ao codinome que darei ao personagem que ficou com a que foi apelidada pelos amigos dele de Smurfete. Na vila dos Smurfs, aquele que sonhava com a Smurfete e fazia declarações de amor para ela se chamava Smurf Apaixonado. Mas acho que o perfil do cidadão cuja história irei narrar se aproxima mais do smurf que, em português, recebeu o nome de Joca (no original, ele é chamado de Jokey). Para quem não se lembra, Joca era o smurf que zoava com todo mundo e tinha como brincadeira preferida oferecer presentes que explodiam na cara. Em função desse hábito, Joca levava bronca dos outros smurfs e suas brincadeiras acabavam virando contra ele.




Dilema resolvido: o personagem de que tratarei agora terá o codinome de Joca, pelo fato de ele ser meio maluquinho e de ter sido alvo de chacota dos amigos após ter ficado com a Smurfete. A menina que ele pegou, para usar um verbo próprio do vocabulário deles, foi chamada de Smurfete apenas pelo fato de ser loura e baixinha. Diferentemente da garota-smurf, esta não despertou a cobiça dos outros machos. Muito pelo contrário, um deles, o Baiano que estudou no Colégio São Paulo (achei que ele tinha uma cara conhecida, mas não me lembrava dele, muito provavelmente, por ele ser dois anos mais novo do que eu), no instante em que a viu, comentou com o amigo que estava do lado: "Que marmota é essa?". E assim descreveu a Smurfete: "Ela andava como um pinguim, passou tanto blush, que parecia que tinha um semáforo na cara. E detalhe, a feiosa se achava a gostosona e ainda era chata. Diante de tanta chatice e tiração de onda, não perdoei e, para reduzi-la à sua insignificância, disse para ela, mais de uma vez: Você não se parece com nada".

Colecionador, que logo mais será devidamente apresentado, se pronunciou em defesa do amigo, mas, claramente, em tom de esculhambação: "O cara tem de ser muito macho, muito macho mesmo, para pegar uma mulher como aquela Smurfete. Não era pó o que ela usava no rosto; sobre a pele havia uma camada branca tão espessa que parecia massa de rebocar parede. Você precisava ver o brinco de oncinha que ela esqueceu no apartamento de Joca. Uma coisa horrível."

Nisso, Colecionador tinha toda razão. Depois da festa "Mistura Fina", fomos ao apartamento de Joca comer uma pizza, e eu pude ver com meus próprios olhos o brinco da Smurfete. A parte que se encaixava na orelha tinha uma forma redonda, mas sem ser esférica, era uma superfície plana, revestida de um tecido horrendo, com estampa de onça. Uma tira vertical de strass, sobre o tecido, fazia as vezes de raio do círculo. Desta primeira bola, digamos assim, para facilitar a descrição, pendia um fio, de, mais ou menos, 6 cm, que a prendia a uma outra bola, idêntica, só que 3 vezes maior. Juro que me esmerei na descrição daquela coisa exótica que demos o nome de brinco e aproveito o ensejo para fazer alguns pedidos:

1) Engenheiro ótico, por favor, me corrija se usei algum termo inadequadamente. Eu até me virava bem em matemática, mas entender de geometria não faz parte das minhas melhores habilidades;

2) Joca, se o brinco ainda estiver na sua casa, por favor, tire uma foto e mande para mim, para que eu possa publicá-la aqui no blog, de modo a conferir mais realismo a este relato;

3) Se algum desenhista conseguir, a partir desse retrato-falado que fiz do brinco da Smurfete, esboçar uma imagem do referido objeto, faça a gentileza de enviá-la para mim. Se esta for fiel à imagem que guardo na memória, também me comprometo a publicá-la, para que sirva de ilustração.

Como jornalista, pedi a Joca que apresentasse a sua versão em relação aos fatos narrados por seus amigos, mas ele preferiu não se pronunciar, tampouco negou as informações. Somente fez questão de deixar claro que Smurfete apenas dormiu no seu apartamento, no puff, enquanto ele foi deitar em outro cômodo na companhia do Colecionador, e, fora os amassos que ocorreram no mesmo puff que serviu de cama para a menina, não rolou uma intimidade maior entre eles. Ou seja, num português claro e chulo, segundo Joca, ele não comeu a Smurfete.

Colecionador confirmou o fato de que dormiu no mesmo quarto de Joca e apresentou outros detalhes: "Realmente, eu testemunhei a cena no puff", disse ele fazendo o gesto de embaralhar as mãos, entrelaçando os dedos. "Mas, mais tarde, Joca foi dormir no quarto dele, onde eu estava, e a Smurfete ficou lá, no quarto da televisão, roncando, deitada no puff. Eu dormi na cama, e ele, por sua vez, armou a rede, num nível acima, sobre mim. A família de Joca é do Nordeste, e, na casa dele, há esse costume de dormir em rede. Para falar a verdade, nem dormi. Fiquei deitado no nível de baixo, só escutando e sentindo o bombardeio que vinha lá da rede", nos relatou Colecionador, com seu jeito engraçado de contar histórias.

Colecionador de Calcinhas

Acredito na veracidade do que foi narrado por Colecionador, até porque a sinceridade é um traço marcante nele. Só não entendi direito onde dormiu a outra menina, que era amiga de Smurfete e tinha ficado com ele. Aliás, a relação entre ele e essa garota é um tanto ambígua e contraditória. Explico:

1) Ele ficou com a dita cuja antes de chegar no Boca Negra, no dia do nosso aniversário. Pegador já havia avisado a ele que Linda River, por quem Colecionador nutria uma paixão platônica, que dias depois tornou-se concreta, também estaria lá. Mesmo com a ficante a tiracolo, perguntou para várias garotas que estavam no bar: "Você é Linda River?". Quando, finalmente, encontrou a famosa Linda River, perdeu completamente qualquer noção de conveniência. Explicou a situação à sua musa e chegou a propor que fossem conversar em outro lugar, longe da vista da amiga da Smurfete.

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Por falar em Smurfete, esta também se encontrava no Boca Negra (pelo visto, quase toda a população de Brasília estava lá) e, antes de ficar com Joca naquela mesma noite, já tinha trocado beijinhos e abraços com outro amigo de Pegador, conhecido como Paraíso. Depois dizem que Salvador é um ovo; em Brasília, o cenário não parece ser muito diferente. Como Paraíso foi embora mais cedo, a fila de Smurfete andou. E olhe que ele até tinha dado valor à feiosa (uso aqui esse adjetivo com base nas várias informações que obtive a respeito dela).

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2) Naquela noite, alguém tinha derrubado o teto do Boca Negra, e uma garota havia sido atingida na cabeça. Soube até que Linda River, generosa que é, socorreu a vítima, colocando gelo no lugar do machucado. No dia seguinte, Pegador nos disse que foi Colecionador quem provocou o acidente. Quando eu soube que a menina sobre a qual o teto havia caído era a amiga de Smurfete, perguntei a Colecionador por que ele não cuidou da sua acompanhante. E ele respondeu: "Quatro seguranças partiram para cima de mim, eu ia, por acaso, prestar atenção no que tinha acontecido com a mulher. Ah, quer saber, foda-se".

3) Apesar da atitude negligente (observem que usei um adjetivo bem light, para qualificar um comportamento inadmissível) para com a tal menina, quando falava sobre ela, Colecionador parecia até o Smurf Apaixonado. "Olhe, vou lhe dizer, ela era uma coisinha muito linda. Linda, linda, linda. Smurfete era horrorosa, mas a amiga dela... Era gata, muito gata". Interrompendo a série de suspiros e elogios, o irmão de Joca, que, assim como eu, estava ouvindo toda a história, perguntou: "Me diga uma coisa, essa é a mesma que você estava chamando de puta e acusando de ter roubado seu relógio e o dinheiro da sua carteira hoje de manhã?".

Como Colecionador é um cara super sincero, assumiu o erro, na frente de todos os presentes: "Chamei de puta, chamei de vagabunda, porque pensei que ela tinha roubado meu relógio, mas depois o achei em outro lugar. E o dinheiro da carteira ela pegou mesmo, mas foi para pagar a conta, já que os seguranças não largavam do meu pé, dizendo que eu tinha de dar quinhentos contos para cobrir o prejuízo do acidente com o teto. Sei lá como aquela porra caiu, eu devo ter me apoiado, sei lá. Só sei que, nessa confusão, além da minha conta, a menina deve ter pago a dela e a de Smurfete. Linda ela era, só não chegava aos pés de Linda River, é claro".

Encerrado o assunto "Smurfete e sua amiga", Colecionador passou a falar sobre como conheceu Joca. Antes, para efeito de esclarecimento e contextualização, cabe dizer que todas essas histórias foram narradas na mesa do bar do Mormai, que fica no Pontão, um centro de lazer, com lojas, bares e restaurantes, situado às margens do Lago Paranoá. Na ocasião, estavam presentes: Colecionador; Joca e seu irmão (o já mencionado Engenheiro Ótico); Pegador; Baiano do Colégio São Paulo; Defensor de Joca (amigo deles que só se pronunciava para defender Joca); e as meninas baianas (eu, Lena e Naiana).

Voltemos ao relato sobre o ínicio da amizade entre Joca e Colecionador, na versão deste último:

"Quando eu conheci Joca, ele não tinha amigos. Tanto é que ele morava em outra quadra e só vivia na minha, pois não se relacionava com o pessoal da dele. Sem brincadeira, o telefone dele nem tocava. Simplesmente, ninguém ligava para ele. Foi aí que ele percebeu o potencial da minha amizade e passou a freqüentar a minha casa, inclusive quando eu não estava. Tocava a campainha, a mamãe abria porque era meu amigo, e ele ficava lá, tomava banho de piscina, almoçava e, quando eu chegava em casa, batia com ele, no meu quarto, vestido com minhas roupas e, ainda por cima, sem ter tomado banho".

Perguntei a Joca se isso era verdade, e ele, que é aparentemente um rapaz de poucas palavras (e, pelo visto, de muita ação, pelo menos, com a mulheres), se limitou a responder:

"É porque eu pegava Lailiane, a irmã dele".

Diante dessa afirmação, Colecionador protestou:

"Mentira dele. Lailaninha é uma deusa junto desse traste. Onde já se viu uma mulher linda como Lailaninha... ela é uma princesa, não ia olhar para um cara que nem banho toma, quase um mendigo, ao lado dela".

"A gente namorou, ele é que nunca soube que eu dava uns amassos na irmã dele", disse Joca.

"Que você tentou agarrar Lailaninha isso eu sei. Eu estava tomando banho, e ela ficou me gritando, dizendo que você entrou no quarto dela e queria agarrá-la à força. Ela fugiu para o quarto da mamãe, achando que lá você não entraria, por respeito à mamãe. Não é que o safado entrou. Cheguei lá, estava Lailaninha num canto, encurralada, bem no vértice, e esse sujeito lá enchendo a paciência da minha irmã, no quarto da mamãe, pode?", falou o Colecionador, antes de começar, na seqüência, a exaltar a nobreza e a beleza da irmã querida.

"Dos cremes da Lancôme você não fala", disse Joca, na tentativa de desviar o foco para um novo assunto polêmico.

Mas Colecionador nem se abalou: "Fale, pode falar que não tem problema".

"A gente tinha ido acampar na Chapada, eu, Colecionador e Piauí, um amigo nosso. Durante o dia, saímos para andar, tomar banho de cachoeira, etc. Quando voltamos, tinham nove ligações de Lailiane no celular de Colecionador, cinco, no meu, e mais três, no de Piauí. Ficamos preocupados, achando que havia acontecido alguma coisa, e, pelo número de ligações, devia ser algo grave. Quando ele ligou de volta para a irmã e perguntou por que ela tinha ligado tantas vezes, ela gritou do outro lado: "Você levou todos os meus cremes da Lancôme!".

"Cremesss... Foi um só, e isso eu não nego. Eu uso hidratante facial. Na Chapada, a gente toma sol o dia inteiro, não custa passar um creme, eu disse um creme apenas, na cara, para ela não ficar ressecada. Eu me cuido, não sou um maltrapilho como você", rebateu Colecionador, apresentando a sua versão dos fatos.

Depois, ameaçou: "Eu vou ligar para Lailaninha, para ela contar direito o que aconteceu no dia que você quis atacá-la. As meninas baianas aqui vão conhecer quem você é. E ela [ele se referia a mim] vai escrever no blog".

Joca não se intimidou com a ameaça: "Pergunte a ela se a gente não namorou, se ela não já me beijou".

Eu fui a primeira a botar pilha. Colecionador pegou o celular, ligou para a irmã e ativou o viva voz, sob os olhares atentos e ouvidos a postos dos presentes na mesa. Chamou, chamou e caiu na caixa. A cada tentativa frustrada, Colecionador dizia: "Ou ela está no banho ou está madeirando". Após a terceira tentativa, ele passou a não considerar a opção do banho: "Tá madeirando com aquele namorado dela, o Lombardi".

Ele nem se lembrava como era o nome do cunhado, o chamava de Lombardi, pelo fato de que ele nunca vê o rapaz. "Eu sei que ele existe, mas ele não vai lá em casa", disse Colecionador.

Joca, então, teve a idéia de ligar para Piauí, para confirmar a versão dele sobre a história dos cremes da Lancôme. Piauí sustentou a mesma versão do episódio (todos nós ouvimos a conversa no viva voz), mas Colecionador não se deu por vencido: "Eu nunca neguei. Só disse que foi UM creme, e não vários. Agora, quero ver o que Lailaninha vai falar quando parar de madeirar".

A conversa com Lailaninha, que também se tornou de domínio coletivo por meio do viva voz, não foi exatamente como Colecionador esperava, pois ela se deu conta de que aquele papo fora de hora tinha algo de estranho: "Olha só a minha situação. Você quer saber o que aconteceu, naquele dia, no quarto da mamãe? Ah, ele ficou enchendo meu saco".

Depois dessa última declaração da irmã, Colecionador se despediu de Lailiane, fechou os olhos e arqueou as sombrancelhas com um ar triunfante. Desta vez, quem não se convenceu foi Joca, que fez questão de deixar uma interrogação pairando sobre a mesa: "Mas ele não perguntou a Lailiane se ela namorou ou não comigo. Ela já me beijou, isso é fato".

Não me lembro exatamente como a história veio à tona. Eu tenho a vaga impressão de que Colecionador começou a falar da mãe, a partir do caso da irmã, e aí, conversa vai, conversa vem, mencionou que a mãe, uma vez, quis jogar fora a coleção de calcinhas, que ele guardava no armário dele.

Nem precisei pedir, a mesa imediatamente exigiu, quase em uníssono, que ele explicasse direito aquela história. Ele repetiu o que já tinha dito, com outras palavras, e eu tomei a frente da entrevista, que aqui reproduzo, em formato de pergunta e resposta. As perguntas (P) foram minhas ou dos demais presentes, e as respostas (R) foram de Colecionador:

P: Quer dizer que você tem uma coleção de calcinhas, e sua mãe tem conhecimento disso.

R: Sim. Ela quis jogar fora, mas eu não deixei. Ela estava arrumando meu armário e encontrou o saco.

P: As calcinhas ficam num saco?

R: Num saco de pano. E são todas usadas.

P: Usadas? As calcinhas da sua coleção nunca foram lavadas?

R: Usada é uma coisa; suja é outra.

P: Mas por que isso? Não fedem?

R: Claro que não. De vez em quando, eu abro o saco e fico sentindo o cheirinho delas. São lindas. Cada uma tem o cheirinho da sua dona.

P: Você rouba as calcinhas?

R: Não, as garotas me dão.

P: São elas que oferecem, "Toma aqui, fique com a minha calcinha para você", é isso?

R: Quando não oferecem espontaneamente, eu peço, e elas acabam dando, para eu guardar de recordação. As calcinhas são lindas. Tem uma de filó que é uma coisinha. Sabe aquela marca Victoria Secret que as modelos usam nos desfiles? Na minha coleção, tem dessas.Todas usadas.

Cada doido com sua mania... E olhe que no dia seguinte a essa conversa no Pontão, escutei um outro rapaz, lá no churrasco na casa de madeira, dizendo que também tinha a sua própria coleção. Segundo ele, não possuía muitos exemplares, mas tinha esse hábito de colecionar calcinhas.

É certo que não posso generalizar, mas tenho a obrigação de ressaltar que não é um dado comum que, em menos de 24h, eu tenha conhecido dois candangos que confessaram em público ser colecionadores de calcinhas.

Para encerrar esse longo relato sobre os dias que passei em Brasília e sobre essas figuras inusitadas que lá conheci, uma última informação, estilo furo de reportagem de revista de fofoca: na segunda-feira, na véspera da nossa viagem de volta a Salvador, Colecionador conseguiu realizar o sonho de beijar Linda River. A partir de então, em seu Plano de Metas, ele elegeu como meta-síntese: conquistar o coração e a calcinha da amada. E o fez sob a seguinte promessa: "Se tal meta for cumprida, eu queimarei toda a minha coleção de calcinhas".