15 de março de 2008

Pé de aliche?????

Minha querida e única irmã hoje mora no Rio de Janeiro e trabalha num escritório de arquitetura na Barra da Tijuca. Já está no Rio há mais de dois anos, mas, tirando um “s” um pouco mais chiado (isto é, com som de xxxxx), de vez em quando, e uma entonação levemente diferente que só eu consigo notar, não perdeu o sotaque de sua terra. Muito pelo contrário. Ela continua empregando com a mesma freqüência o “Oxe!” como interjeição de surpresa e ou de discordância, e os cariocas com os quais ela convive, muitas vezes, são obrigados a consultar o dicionário de baianês. A primeira vez em que a faxineira foi fazer uma limpeza no apartamento dela, Marília disse para a moça: “Não repare, não. Isso aqui tá um mangue. Acabei de me mudar”. E a criatura olhou para o chão, para o teto e para tudo que estava em volta, com aquele ar interrogativo, até que Marília percebeu e explicou: “Ah, me desculpe. Na Bahia, quando a gente fala ' Tá um mangue', é para dizer que está muito bagunçado”.

Além da fala mais arrastada e do léxico exclusivo do vocabulário baiano, há outros traços que não negam a origem de (observem que, por sermos baianas, tanto eu como Marília usamos “de” e não, “da”, como fazem os cariocas) minha irmã, como podem atestar seus colegas de trabalho. Quando o bicho está pegando (os cariocas também usam essa expressão), ela invoca Santo Expedito e coloca um santinho (de papel impresso, daqueles que as pessoas distribuem quando fazem promessa; pelo menos, aqui em Salvador é desse jeito) ao lado do computador. O boy (antigamente, quem exercia essa função era chamado de contínuo, tanto no Rio como na Bahia) que trabalha no escritório acha isso um absurdo, pois a igreja evangélica da qual ele é fiel condena a devoção aos santos. “Onde já se viu, em vez de Jesus, ficar rezando para homem morto?”, brada ele indignado. E sempre que ouve esse comentário, Marília não consegue deixar de pensar na reação que ele teria se soubesse da Iemanjá gigante que eu tenho no quarto e fica numa prateleira ao lado de minha cama. Outro dia, o cristão ficou de cara fechada e foi se queixar com a secretária, porque Marília e os outros arquitetos estavam ouvindo “música de macumba”. As “músicas de macumba” em questão eram de um CD de Maria Bethânia (“Dentro do mar tem rio”) que Marília tinha levado para ouvir no escritório. E foi para não despertar a ira e a intolerância religiosa do boy evangélico que ela achou melhor deixar no carro as flores que havia comprado para Iemanjá no dia 02 de fevereiro. No intervalo de almoço, ela aproveitaria para ir até a praia fazer suas oferendas. No entanto, minha irmã não abriu mão de ir para o trabalho vestindo uma blusa com a imagem de Iemanjá que eu comprei para ela usar no dia da apresentação de seu trabalho de conclusão de curso na faculdade (como o projeto dela era um oceanário, a referência à Rainha das Águas, que inclusive foi mencionada na fundamentação teórica do trabalho, era totalmente pertinente).

Como se vê minha irmã é herdeira legítima do sincretismo religioso presente na cultura baiana. É certo que ela tem suas crenças e mandingas, mas nunca sequer pisou num genuíno terreiro de candomblé em Salvador (apenas em uma única ocasião consultou o ifá ― jogo de búzios ―, na sala de um apartamento no Catete, no centro da cidade do Rio de Janeiro, e foi a uma roça de santo em Niterói; isso porque foi me acompanhar numa consulta e num trabalho de limpeza que fiz com uma mãe de santo que é tia de minha madrinha e mora no Rio). Portanto, a pecha de macumbeira, não lhe cabe de modo algum. Até porque, é bom ressaltar, isso não deveria ser uma pecha nem para ela nem para ninguém; afinal, respeito à liberdade de culto é bom, e todos deveriam gostar.

No entanto, minha irmã faz por merecer a fama que tem, principalmente aos olhos do boy evangélico. Antes de voltar das férias em Salvador, ela foi à Ceasa (Central de Abastecimento de Salvador) do Rio Vermelho comprar acarajés e abarás congelados, que seriam levados para o Rio em sua bagagem, e, já que tinha passado por uma barraca de ervas, resolveu comprar também um banho “chama emprego” para o namorado de uma amiga do escritório que estava desempregado e outro de “comigo ninguém pode” para dar de presente ao chefe de meu cunhado.

Tudo isso explica o raciocínio da arquiteta do escritório, a mesma que namorava o rapaz desempregado, quando Marília lhe receitou “Pedialyte” para ajudar a amenizar o mal estar decorrente de uma infecção intestinal. A moça não estava indo para o trabalho, e minha irmã ligou para saber do estado de saúde dela. Ao final da conversa, a amiga de minha irmã perguntou:

― Onde eu acho para comprar? ­

― Em qualquer farmácia. Você nunca tomou? Minha mãe sempre me dava, quando eu tinha dor de barriga ― disse Marília.

― Obrigada pela dica e por ter ligado. Vou procurar ― ela agradeceu, esperançosa de que a sugestão de Marília surtisse efeito.

Quando desligou o telefone, a menina ficou intrigada com a medicação indicada por minha irmã. “Pé de aliche? Será que é uma planta para fazer chá? Aliche que eu saiba é um peixinho que se coloca na pizza, parece um atum mais salgado. Mas deve existir uma planta com o mesmo nome. Não vou nem comentar aqui em casa, para não acharem que é coisa de macumba da Bahia”, pensou ela enquanto procurava o telefone de uma farmácia.

Ligou para a farmácia:

― Por favor, vocês têm “pé-de-aliche”?, perguntou à funcionária que atendeu.

― Temos sim.

― Têm? ― a colega de Marília não esperava por aquela resposta, pois achava que não se vendia aquilo em farmácia.

― Sim, senhora. A senhora vai querer normal ou com sabor? Temos de framboesa, de morango...

― Framboesa? Morango? Como assim?

― Esses são com sabor, mas temos o normal, que é o que a maioria prefere ― disse a funcionária da farmácia.

― Mas eu estou procurando uma planta, para fazer chá. É uma planta medicinal. Pé-de-aliche.

― A senhora me desculpe, mas disso nunca ouvi falar. Não conheço nenhuma planta com esse nome.

― Tudo bem, obrigada. Eu sabia que não iria encontrá-la em farmácia.

Quando o pai da colega de Marília chegou em casa, vendo o estado da filha perguntou:

― Filha, você ainda está assim? Está tomando algum remédio, alguma coisa que alivie o mal estar?

― O que eu posso tomar, além do “Floratil”? É preciso deixar sair o que provocou a infecção; os médicos dizem que é melhor não tomar remédio para prender. O pior é que não consigo comer nada. Além do mal estar do enjôo, ainda tem a fraqueza. Desse jeito, não tenho condições de ir trabalhar.

― Por que você não toma “Pêdialyte”? Vai se sentir melhor.

― O senhor conhece isso????? ― perguntou, espantada.

― “Pêdialyte”. Claro, filha. É um soro, é indicado justamente nos casos de desitratação provocada por diarréia aguda.

― Quer dizer que não é uma planta para fazer chá?

― Óbvio que não. De onde você tirou essa idéia? ― respondeu o pai da menina, achando que a fraqueza já estava afetando as idéias da filha.












OU













Moral da história: De um “é” para um “ê”, existe uma enorme diferença. Essa vida é uma grande piada, até quando se está na merda.

7 comentários:

Eduardo disse...

Muito legal a história, escreve muito bem.Entrei por acaso na sua página, e achei tudo muito interessante.Não escrevo nada, mas gosto muito de ler.Abraço.

Cris disse...

Oi, Eduardo!!! Obrigada. Gostar de ler já é um bom começo. Que bom que gostou dos meus textos!!! Achou por acaso, mas agora já sabe o caminho, espero que volte outras vezes. Um abraço

Eduardo disse...

Com certeza, estarei sempre passando por aq. Qdo tiver um tempinho, dê uma passada neste endereço. http://www.palavrasdeassalto.blogspot.com/
É de um grd amigo meu, acho q pode gostar.Bjo grd.

Cris disse...

Eduardo, sou mais da prosa do que da poesia, mas, acima de tudo, sou fã das palavras, principalmente as que nos tomam de assalto. Gostei do blog do seu amigo! Obrigada pela indicação. Abraço

Eduardo disse...

Valeu, espero que possamos nos comunicar mais vezes.Estarei sempre passando por aqui.Abraço.Se tiver algumas indicações, estarei por aqui.Abraço.

Oscar disse...

Historinha simplesinha, mas bonitinha e gostosinha. Aaadooooooooreeeeeeeeiiiiiiii!, como diria minha filha adolescente.

Parabéns,Cris. Escreva masi historinhas iguais à esta; você sabe como fazê-lo.
Abrçs.
Caio Lima

Cris disse...

Obrigada, Caio! Ando meio sem tempo de escrever histórias simplesinhas e gostosinhas como essa. A vida acadêmica está sugando todas as minhas energias. Há quase um ano não publico nada aqui no blog. Mas, com certeza, voltarei a fazê-lo.
Abraço,
Cris