19 de maio de 2008

Coisa boa é amar

É meia noite, o exato momento em que se inicia o dia 19 de maio e começo a escrever esse texto. Devia me preparar para dormir, afinal sairei de casa daqui a sete horas, para o trabalho; ou então aproveitar que estou sem sono, para adiantar minhas leituras do Doutorado, pois foi para isso que bebi uma xícara de café, no jantar, com a intenção de me manter acordada.

Mas não estou concentrada para ler o livro de Milton Hatoum, o atual queridinho da turma de Letras. O domingo chuvoso, que já terminou, me deixou reflexiva, e por isso resolvi escrever um texto com cara de blog. Por texto com cara de blog, entende-se: um relato em tom confessional, próximo do gênero “diário íntimo”.

Isso talvez se deva ao fato de ter ficado grande parte do dia sozinha ― meus pais passaram o dia em Itacimirim ― e ao DVD de Frank Sinatra a que assisti enquanto comia o macarrão com molho de atum que fiz para mim. Não tenho vocação para cozinha (e isso não tem nada a ver com ranço feminista; admiro profundamente aquelas e aqueles que a têm), mas me recuso a comer, no almoço, produtos industrializados. Então, quando não tenho alguém que o faça por e para mim, prefiro preparar meus pratos.

Meu problema na cozinha é falta de timing, há sempre um momento em que fico baratinada, com a água do macarrão fervendo, as cebolas já ficando mais do que douradas, a lata de atum por abrir e os tomates a cortar. Aliás, cortar é o verbo que denota toda a minha impaciência e pouca habilidade na cozinha. Chega um instante em que me dá agonia cortar os pedacinhos de qualquer coisa, de forma que eles fiquem iguais e esteticamente adequados. Para mim, essa é a pior parte. Para compensar a ausência de um tempero especial, meu truque é usar pimenta (branca, do reino, calabresa ou um mix de todas elas). Eu gosto dos pratos que faço, mas jamais os prepararia para servir num jantar para convidados. O sabor da comida de minha autoria é semelhante à de restaurante a quilo: é da qualidade de comível, mas carente de um tempero diferenciado.

Boa parte das vezes em que cozinho para a minha pessoa, gosto de assistir a um DVD de Frank Sinatra, que é de meu pai. “My way” é a terceira música do DVD e, normalmente, coincide com os últimos momentos da minha refeição: “and now the end is near, and so I face the final curtain...”. No meu caso, a garfada final, geralmente, se dá ao som do refrão: “and more, much more than this, I did it my way”. E assim termino o almoço com a sensação de que foi melhor enfrentar as panelas do que comer uma lasanha da Sadia.

Sob essa atmosfera introspectiva provocada pela música de Sinatra e pela chuva que caía, decidi fazer a digestão na frente do computador, ouvindo outras músicas de que gosto. Entrei no Youtube e baixei um vídeo de Gal e Elis Regina, novinhas, cantando juntas “Estrada do Sol”, de Tom Jobim. Depois procurei Bethânia interpretando “Outra Vez”, de Roberto Carlos, e Marvin Gaye cantando “Sexual Healing”. Aí me lembrei da música “A natureza das coisas”, cuja letra traduz aquilo que estabeleci como lema em minha vida: “se avexe não, amanhã pode acontecer tudo, inclusive nada”.

A primeira vez que ouvi essa música foi num filme brasileiro chamado “A máquina”. Junto com ela, também me veio a recordação de outra cena do filme, que, na ocasião, havia me chamado a atenção: um clipe dos “The Sconhecidos” cantando uma versão, digamos assim, bem cool, de “Dia Branco”. Até então, nunca tinha reparado na beleza da letra, pois sempre achei uma chatice ouvir a versão original de Geraldo Azevedo: “Se branco ele for / E esse canto / Esse tanto / Esse tão grande amor / Grande amor... / Se você quiser e vier / Pro que der e vier / Comigo...”.

O clipe, que no filme é anunciado pelo personagem interpretado por Paulo Autran, foi uma das cenas que mais me tocaram quando assisti ao DVD, mais de um ano atrás, numa noite de sábado, em que pude desfrutar daqueles bons momentos em que a solidão é bem vinda. E talvez essa passagem tenha me tocado esse tanto, não só pela música conhecida que me foi revelada de uma outra maneira, mas justamente devido à seqüência que a sucede, na qual Antônio, o protagonista do filme, declara para Carina, a mocinha, o amor que sente por ela. O texto é primoroso: “esse negócio que eu sinto, esse negócio de doido, que eu não encontro nome em nenhuma das palavras existentes e que não tem som nem letra escrita que explique como ele é exagerado”.

Carina pergunta onde ele leu aquilo, e Antônio responde: “eu nem li, nem decorei, nem sei repetir de novo, porque sentimento sentido de verdade não carece ser documentado em papel ou romance nem filme, pois não é da conta de ninguém, a não ser da pessoa que sente, além da outra responsável pelo afeto causado”.



A professora da disciplina "Representação literária" costuma falar que o que motiva a criação de um escritor é uma falta, a sensação de incompletude. E foi por esse sentimento que estou aqui escrevendo esse texto, embora ele não tenha grandes pretensões literárias. Ontem, por coincidência, um amigo justificava todas as insanidades que dizia, utilizando o seguinte pretexto: “me desculpem, mas é preciso botar para fora, exteriorizar. Se não, dá câncer”.

Seguindo esse sábio procedimento, venho aqui falar da carência de um grande amor pro que der e vier. É isso o que eu e minhas amigas solteiras tanto desejamos: não precisamos de um homem provedor, não queremos uma festa de casamento para dar uma satisfação à sociedade, não ansiamos pelo casamento em si, mas sentimos muita falta de alguém que nos faça experimentar "esse negócio de doido" que Antônio diz ter por Carina.

Se me arvoro à condição de porta-voz é porque sei que posso falar por mim e por elas. Somos mulheres felizes e nos sentimos realizadas em quase todos os aspectos de nossas existências, mas há essa incompletude que vem acompanhada do constante desejo de tentar preenchê-la com um amor.

E o amor que buscamos não é o da ficção, que, nas palavras de Antônio, é um “tal de amor que personagem finge, amor dessa qualidade que tem paciência até para esperar, entre um anúncio e outro, o voltamos a apresentar, para só então concluir o que tinha fingido que tinha começado”.

E o objeto desse tão sonhado amor está longe de ser um príncipe encantado; pode até ter “cara de leso”, como a de Antônio é classificada por Carina. Esse tal amor pode até prescindir de lindas palavras, como as que Antônio tão bem falou para ela, desde que seja “um sentimento sentido de verdade” tanto por nós como por aquele que há de ser o “responsável pelo afeto causado”.

Já é tarde, e preciso dormir, pelo menos, umas poucas horas. E o farei com a esperança de que amanhã (no caso, hoje) poderá acontecer tudo, inclusive nada. Coisa boa é namorar!


9 comentários:

Eduardo disse...

Um texto pequeno, que diz muita coisa.Acho que esses dias chuvosos, fazem as pessoa pensarem muito sobre companhia.Mas, não pense q são só vcs não, tá difícil para ambos os lados.Rs.Abraço.

Anônimo disse...

Fantástico o seu texto, Cris! Voltarei mais vezes para ler mais coisas legais. Agora, mata minha curiosidade pelo amor de Deus: como é o nome do filme, mulher? Rs... Beijinhos Flavinha

Cris disse...

Eduardo, realmente a chuva exerceu uma forte influência; não tinha pensado nessa perspectiva... Um grande abraço para você!!!

Flavinha, que bom que ganhei mais uma visitante! Eduardo, por exemplo, entrou uma vez, por acaso, e está sempre por aqui. O nome do filme é "A maquina". Assista, porque vale a pena! Bjs

Márcio Falcão disse...

Dra. Jones eu li o seu blog quase que todo. Impressionante como a Dra domina a nossa língua. Escreve coisas do dia a dia como se estivesse escrevendo um livro. Eu li que no domingo não rolou um vinhozinho foi uma pena, pois merecia pelo seu estado de espírito. Sempre que postar algo nele pode me dar um alô. Beijão

Cris disse...

Valeu, Beijoca! Pode deixar que aviso quando escrever outras coisas. Você tem toda razão quanto ao vinhozinho; teria tudo a ver com o clima e com as reflexões. Beijão

22 de Maio de 2008 13:15

Anônimo disse...

Querida Cris,
Li o seu texto sobre Wagner e a nossa turma. Em seguida, o do amor. Esse me chamou muito a atenção. Adorei sua forma de escrever. Esse é um tema que dá pano pra manga. Tenho muitas amigas aí em Salvador que estão solteiras à busca de uma companhia interessante. Tá difícil. Digo por também haver passado por isso, ter ficado solteira justamente na época que estavam todos "emparejados". E finalmente, depois de tanto tentar com os conterrâneos e me dar mal, deixei que o meu coração me trouxesse para a Argentina, sem medo de ser feliz. Pensava que, por ter me enamorado de um argentino e a coisa ter funcionado bastante bem (com ajustes, claro), durante os últimos quase 5 anos, o problema do desencontro era geográfico, acometia uma geração de soteropolitanos, principalmente do sexo feminino. Me equivoquei: aqui, apesar de haver muito mais densidade populacional que transita nas mesmas condições culturais e sociais, há um grande número de solteiríssimos e solteiríssimas na faixa dos 30. E pra lá dos 30 também. Como Buenos Aires é a terra da psicanálise, há muitas leituras sobre esse fenômeno, em especial sobre o dessa geração continuar morando nas casas dos pais, ou ir e voltar (o fenômeno do ninho semi-vazio). Vou tentar encontrar material sobre isso e te mandar. Eu acho que somos de uma geração que questiona e reposiciona os valores das relações afetivas e, mesclado a isso, não levanta vôo por causa do excesso de conforto no lar maternal. Plutão em libra, tudo na balança...acho que vou montar um blog para falar dessas coisas!
Beijos!
Cla

Cris disse...

Oi, Cla!!!
Que ótimo esse seu depoimento! Esse desencontro generalizado no âmbito das relações afetivas é um tema que nos interessa, justamente por afetar a nossa geração tão diretamente, como você tão bem observou. Estou torcendo para que você leve mesmo adiante a idéia de criar esse blog, para refletir sobre essas questões, que vão além de um fenômeno exclusivamente regional. Dou a maior força nesse sentido e serei uma leitora assídua. Hoje pretendo assistir a Sex and the City e, a partir do filme, quem sabe, escrever alguma coisa sobre esse tema. Gracias, por sua reflexão. Beijo grande

Anônimo disse...

Serrote,
venho acompanhando o seu blog. Adorei este textinho e resolvi me manifestar também. bjs, Carol

Cris disse...

Obrigada, Carol, não só pelo seu comentário, mas, sobretudo, pela sua torcida para que eu encontre esse tal amor que tanto procuramos. Beijão